domingo, 6 de fevereiro de 2011

Bob Dylan e o grande segredo da indústria da música

“A edição musical é o grande segredo da indústria musical. É onde o dinheiro está.” As palavras pertencem ao biógrafo Colin Escott e constam do encarte da coletânea The Witmark Demos: 1962-1964, do compositor norte-americano Bob Dylan. Há aí uma profunda ironia: não é todo dia que um segredo de tal magnitude aparece explicitado e encartado dentro de um disco produzido por uma marca todo-poderosa como a Sony Music.

É difícil calcular o que significa uma ponta frágil da indústria musical atual (o conglomerado de gravadoras de discos) colocar sob holofote uma outra ponta, bem menos frágil (as gigantes editoras de música), mas igualmente pressionada por um bombardeio de transformações – nesse caso, no mundo dos direitos autorais. Até pouco tempo atrás, a maioria absoluta dos agentes envolvidos na cadeia produtiva da música preferia manter dentro do armário os temas da edição musical e do recolhimento de direitos autorais pela execução pública das músicas.

Hoje, uma mera coletânea de Bob Dylan pode se dar ao luxo de revelar pequenos segredos (ou “segredos”) sobre esse enigmático setor. Segundo Escott, por exemplo, o dinheiro arrecadado pela circulação da música de um criador como Dylan é comumente dividido meio a meio: metade para o autor em si, metade para a editora que o ajuda a disseminar suas criações mundo afora.

A história é intricada, mas precisa ser contada no encarte, talvez para justificar a existência de The Witmark Demos, que contém a totalidade das gravações demo feitas por Dylan para sua editora no intervalo iniciático 1962-1964, a Witmark (pertencente ao conglomerado Warner Brothers). Datam desse período clássicos como Blowin’ in the WindA Hard Rain’s a-Gonna FallDon’t Think Twice It’s All RightThe Times They’re a-Changin’ Mr. Tambourine Man. Eles reaparecem aqui em versões despidas e despretensiosas, quase sempre à base de voz, violão e mais nada. No início, eram realizadas para mostrar a cantores diversos, de modo a convencê-los de gravar as música do jovem e então pouco conhecido Dylan.

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Eis aí um dos segredos de polichinelo que fazem esta coletânea ser mais interessante pelo encarte que pelas canções em si (qualquer um que seja realmente fã de Dylan já ouviu as 47 faixas em um sem-número de versões diferentes e, não raro, melhores). Em 1962, quando a Witmark contratou Dylan, não existia ainda a figura que ele tornaria paradigmática, do compositor que canta e grava sua própria obra. Como Escott exemplifica, num disco de Nat King Cole havia 12 canções, de 12 autores diferentes. Num de Dylan (e de muitos após seu êxito espetacular), eram 12 canções e um autor.

O que interessava à Witmark era ver as canções de seu menino-prodígio gravadas no maior número possível de versões. Blowin’ in the Wind saiu ao mesmo tempo no segundo álbum de Dylan e num bem-sucedido single do trio folk Peter, Paul & Mary. Nos anos seguintes seria regravada por nomes tão diversos quanto Duke Ellington, Joan Baez, Stevie Wonder, Cher, Marianne Faithfull, Odetta, Diana Ross & The Supremes, o jamaicano Laurel Aitken etc.

Tal como logo aconteceria com a dupla britânica Lennon-McCartney, Dylan fabricava hits que seriam gravados à exaustão por Simon & Garfunkel, The Beach Boys, Johnny Cash, Bob Marley, The Byrds, Nancy Sinatra, Elvis Presley, Them, Jimi Hendrix, Johnny Rivers, Rod Stewart, The Isley Brothers, Bobby Womack, Bryan Ferry, Tina Turner... Isso se devia à força das composições, evidentemente, mas também ao trabalho corporativo de editora como a Witmark, para as quais quantidade era igual a dinheiro. A de Dylan, seria apenas uma das várias fortunas que sua obra amealharia. A máquina do direito autoral se azeitava como nunca antes na história daquele país da América do Norte, e a metodologia colonizaria rapidamente os quatro cantos do mundo. Nomes tropicais como Gal Costa, Zé Ramalho, Fagner e Ruy Maurity também gravariam o cancioneiro de Dylan.

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"Raridades"

O álbum duplo The Witmark Demos, de edição caprichada,  constitui o nono volume da chamada Bootleg Series de Dylan, um caso exemplar do atual estágio da indústria fonográfica nos Estados Unidos. Em franco e contínuo decréscimo de vendagens, as gravadoras de lá encontram uma de suas boias salvadoras sob o rótulo “radidades” – os “bootlegs”, que, durante quase toda a história da indústria foram tratados como material de segunda categoria, pirateados por fãs obcecados por este e aquele artista, contrabandeados e vendidos clandestinamente em lojas e sebos musicais.

Dando existência oficial às ex-ilegalidades, a Sony começou as Bootleg Series em 1991, com três volumes de faixas raras e inéditas do jovem Dylan. Vieram então os três volumes mais impactantes da coleção, com gravações ao vivo de shows antológicos do artista, todos fartamente pirateados durante décadas antes que a Sony acordasse para seu valor. Em 1998, saiu The Royal Alber Hall Concert, de 1966; em 2002, veio à tona The Rolling Thunder Revue, a fabulosa turnê do fabuloso álbum Desire (1976); em 2004, foi a vez do Concert at Philharmonic Hall, registrado 40 anos antes.

The Witmark Demos simboliza, provavelmente, algum tipo de raspa de tacho no baú de raridades (e “raridades”) de Dylan, um artista que sem sombra de dúvida sabe valorizar o passado glorioso que possui, bem como o lucro polpudo que ainda pode extrair de tal passado – ah, se nossos medalhões e suas gravadoras se mirassem no exemplo... Se o baú ainda estivesse meio cheio, é improvável que, juntas, as logomarcas Dylan, Sony, Witmark e Warner fossem querer iluminar o lado delas próprias que mais apreciam manter obscuro.

Outro semissegredo que o texto de Escott destrincha é o significado profundo da chegada do autor-cantor Dylan, num ambiente até então controlado por organizações como a mitológica Tin Pan Alley, uma fábrica de hits de massa feitos em ritmo industrial por só-compositores, para serem interpretados por apenas-cantores. O pequeno e mirrado Dylan, segundo o biógrafo, foi o homem que começou a fazer ruir aquele modelo, rumo a um tempo de mudanças vertiginosas.

O que o encarte não quer dizer é o mesmo “segredo” que hoje causa controvérsias mundo afora (temos aqui o exemplo do estardalhaço pró e contra causado pelo posicionamento aparentemente conservador do novo Ministério da Cultura  em relação ao porco-espinho dos direitos autorais). Não só o momento da chegada de Dylan foi um tempo de transformações – o atual igualmente o é, à medida que a cada dia mais e mais artistas em formação descobrem que a internet é o mais próximo que poderm ter de uma Tin Pan Alley, e que, se eles não forem seus próprios editores, ninguém mais será.

Curiosamente, direito autoral não era um conceito assim tão arraigado antes da passagem por aqui de “revolucionários” de sobrenomes Disney e Dylan, entre milhares de outros. Significativamente, Disney começou seu império pirateando fábulas de Grimm, Esopo etc., tanto quanto Dylan o fazia com o tradicional cancioneiro folk norte-americano. Hoje, dizem, piratas somos todos nós que ouvimos música via internet (não explicam os porquês, pela televisão e pelo rádio pode) sem pagar dinheiros quaisquer a disneys, dylans e seus misteriosos editores. 





Texto de Pedro Alexandre Sanches, no Opera Mundi, via blog do Luís Nassif

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