A convulsão em curso nos Estados Unidos está exacerbando mais do que divisões políticas. Convicções religiosas de pelo menos um quarto da população estão sendo testadas.
Numa carta enérgica aos bispos, o papa Francisco exortou os 52 milhões de adultos católicos americanos a resistir à discriminação contra imigrantes e refugiados —uma clara crítica ao recém-convertido católico e ex-ateu vice-presidente J. D. Vance.
Já na comunidade judaica americana, sinais de dissidência pelo apoio à matança de palestinos são mais abafados, além de ser enfrentados com penalidades como demissões e isolamento social em comunidades.
Um novo livro deve custar ainda mais ostracismo ao autor, um cientista político e membro de uma sinagoga ortodoxa de Nova York. É "Being Jewish After the Destruction of Gaza, a Reckoning" (ser judeu depois da destruição de Gaza, uma avaliação), escrito por Peter Beinart especialmente para os amigos que perdeu. "Este livro é sobre a história que contamos para nós mesmos como virtuosas vítimas permanentes, para bloquear o som dos gritos," ele escreve.
Beinart é descendente de sul-africanos e visitava Israel regularmente desde a infância, em viagens que ele recorda com enorme afeto. Só depois dos 30 anos se engajou em diálogos com palestinos. Ele se diz envergonhado pela demora em compreender que a história que ouviu e ia transmitir aos filhos é incompleta. "Hoje é mais perigoso questionar a legitimidade das ações de Israel do que desacatar a autoridade da Torá", diz Beinart. Ele acredita que a secularização do judaísmo levou a uma evasão moral, à negação dos textos sagrados.
A acusação mais comum desde o terror do 7 de Outubro é de "contextualizar violência." Beinart, que denuncia os antissemitas Hamas e Hezbollah como supremacistas islâmicos, não foge da discussão e deixa claro que ela nada tem a ver com justificação. Sem contextualização, argumenta, não se interrompe ciclos trágicos de violência, como os EUA descobriram ao não refletir melhor sobre o que levou ao terror do 11 de Setembro.
O autor destaca que um grande pecado na fé judaica é a idolatria —venerar criações humanas— e lembra que "um Estado, criado por seres humanos, é avaliado pela maneira como respeita a santidade do indivíduo. A vida das crianças de Gaza é santa."
A filósofa Hannah Arendt alertou logo cedo para o sionismo descolado da fé. Quando foi recebida em Israel para cobrir o histórico julgamento do nazista Adolf Eichman, uma investigação que resultaria no clássico "A Banalidade do Mal", Arendt saiu consternada de um encontro com a então chanceler Golda Meir que lhe disse não acreditar em Deus, mas no povo judaico.
Arendt comentou: "A grandeza deste povo brilhou num momento em que eles acreditavam em Deus e acreditavam nele de tal maneira que o seu amor e a confiança Nele eram maiores do que o seu medo. E agora esse povo só acredita em si mesmo? Que bem pode ser derivado disso?".
Peter Beinart, que é professor de jornalismo na City University de Nova York, dá de ombros para as represálias inevitáveis e confessa que sua angústia maior vem de conversas com jovens judeus praticantes. "Eles me procuram dizendo que estão se sentindo intimidados em sinagogas e não têm coragem de conversar francamente com rabinos."
"Onde estão nossos líderes religiosos para nos lembrar do que significa moralmente ser um judeu?", pergunta.
Reprodução de texto de Lúcia Guimarães na Folha de São Paulo.
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