"Toda censura é burra" é uma máxima de origem incerta que pertence ao patrimônio de sabedoria coletiva da espécie. É incontestável. Toda censura é de uma estupidez zurradora e babona, e essa notícia não podia ser mais velha.
Segundo o pesquisador Eric Berkowitz, autor de "Dangerous Ideas" (Ideias perigosas), uma história da censura, a primeira queima registrada de escritos ocorreu em 430 a.C. com a obra do filósofo grego Protágoras, que punha em dúvida a existência dos deuses.
Por que, então, a censura ainda é capaz de ser notícia no século 21, como se comprova na atual perseguição aos romances "O Avesso da Pele" (Companhia das Letras), de Jeferson Tenório, e "Outono de Carne Estranha" (Record), de Airton Souza?
A resposta é óbvia: porque a burrice é uma constante na história humana em geral e na brasileira em particular. Não só os comedores de alfafa não saem de moda como, em certos momentos e lugares, experimentam picos de poder e popularidade.
Para quem andou distraído: o livro de Tenório, uma delicada história sobre racismo, e o de Souza, que trata com sensibilidade da relação homossexual entre dois garimpeiros de Serra Pelada, têm sofrido sanções diversas.
Ambos são êxitos literários reconhecidos pela parte do Brasil que não anda de quatro. "O Avesso...", realização de um autor jovem mas maduro, levou um Jabuti e virou best-seller. "Outono...", obra de estreia, conquistou o (até então) prestigioso prêmio Sesc de romance.
Nada disso impediu o livro de Tenório de, depois de "denunciado" por uma diretora de escola do interior gaúcho, ser recolhido da rede pública de ensino por determinação de três secretarias estaduais de Educação –no Paraná, em Goiás e no Mato Grosso do Sul.
A alegação –grotesca– é que os alunos do ensino médio se chocariam com alguns palavrões esparsos. Do ensino médio, pois é. Fica evidente o oportunismo político, jogo de cena para eleitores de extrema direita.
O caso do livro de Souza é mais curioso, pois envolve um tiro de escopeta desferido no próprio pé por quem deveria promovê-lo. Chocada com a leitura pública feita pelo autor na última Flip, a direção do Sesc decidiu jogar no lixo a reputação conquistada por um prêmio que era, disparado, o mais importante do país para obras inéditas.
Cancelou a agenda de divulgação dos vencedores do ano passado –o que inclui o belo volume de contos "O Ninho", de Bethânia Pires Amaro, que nada tinha a ver com a história– e demitiu o curador do prêmio, o escritor Henrique Rodrigues, fiador de seu sucesso ao longo de duas décadas.
Ao fazer isso, põe em risco a parceria com a editora Record, que manifestou "extremo incômodo" com o ocorrido. E levanta a suspeita de que terá filtros político-ideológicos para os premiados de agora em diante –o que, como jurado de contos em 2023, posso atestar que não havia. Em resumo, o prêmio Sesc teve um surto de pânico homossexual, pulou no abismo e, se já não morreu, está em coma.
É burrice ou não é? Burrice máxima, e em série. Enquanto isso, os livros que os censores tentam proibir vendem cada vez mais, despertam cada vez mais interesse –toda censura acaba por boicotar a si mesma.
E ainda fomenta a burrice de quem, diante desse involuntário estímulo comercial, acha que ela pode ser relativizada como benéfica, sem entender que o mal feito à liberdade é um mal absoluto, um crime absoluto, a ser repudiado de forma absoluta.
Texto de Sergio Rodrigues na Folha de São Paulo.
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