sábado, 9 de março de 2024

O nome disso não é genocídio, ok?


É preciso ter cuidado com as palavras, usá-las com a maior precisão possível. Outro dia, no bairro carioca da Gávea, presenciei uma cena comovente. Um menino magro e maltrapilho de cinco ou seis anos interpelou uma senhora bem-vestida que saía do supermercado cheia de sacolas e disse: "Me paga um lanche, tia? Dois dias que eu não como".

Não ganhou dinheiro para comer, mas algo até mais valioso, uma lição que o acompanhará pelo resto da vida –medida de tempo talvez curta, paciência. "Me paga, não! Não se começa frase com pronome oblíquo átono", respondeu a mulher, antes de seguir seu caminho reto e tônico.

Outro exemplo de uso desleixado da linguagem que a mulher poderia apontar: chamar de genocídio o que ocorre em Gaza. Parece que isso contraria, além de muitas sensibilidades e a orientação da Casa Branca, também a definição jurídica da palavra. Mas há alternativas.

Pode-se rotular o massacre metódico de civis palestinos promovido por Israel de "banho de sangue", por exemplo. É difícil fazer ressalvas a uma expressão tão precisa para nomear o extermínio de mulheres, bebês, crianças, adolescentes e velhos em suas casas, hospitais e campos de refugiados, acompanhado do veto a toda tentativa de ajuda humanitária.

Uma vantagem de "banho de sangue" é que, não havendo sinal de sangue quando se asfixiam seres humanos em câmaras de gás, eventuais paralelos com o Holocausto ficam descartados de saída, impedindo o falante de incorrer no crime retórico que fez o presidente brasileiro ser declarado "persona non grata" pelo moralmente inatacável governo israelense.

É verdade que a expressão "banho de sangue" pode ecoar, na mente de quem a ouve ou lê, outros massacres de populações indefesas, como os que vitimaram os armênios na Primeira Guerra Mundial e os tútsis de Ruanda nos anos 1990. Em ambas as ocasiões correu sangue à beça, como em Gaza. O problema é que desse modo a indesejada —e teimosa— palavra "genocídio" voltaria à boca de cena. Pensando bem, melhor buscar outra solução.

Quem sabe a velha carnificina dê conta do recado? Ou chacina, hecatombe, açougue? Faxina étnica é melhor evitar, por mais que substantivo e adjetivo pareçam encaixáveis entre si e com a realidade, mas o vocabulário da desumanidade e da matança voluptuosa está longe de ser limitado.

Razia, carnagem, morticínio ­­– são muitas as opções lexicais à disposição do falante que tem achado difícil tocar sua vida normal enquanto vê na tela do celular, quase em tempo real, vidas inocentes serem trucidadas aos magotes, dia após dia, diante de uma humanidade apática ou impotente.

Algum desconforto é natural: nunca tínhamos passado exatamente por isso depois que nos interconectamos. E é claro que pessoas decentes não querem ser acusadas de antissemitismo – palavra que, esta sim, tem sido usada com imprecisão obscena em cobranças de rendição moral incondicional, como se criticar o governo de Israel equivalesse a defender o indefensável terrorismo do Hamas.

É só que não acham correto, essas pessoas apegadas a velhos valores humanistas, que o povo palestino seja tratado como uma colônia de cupins por um governo supremacista de extrema-direita enquanto assistimos a tudo calados, reféns de Biden, Netanyahu e outros filhos de uma égua, ou medindo vocábulos feito tartamudos diante da madame da Gávea que nos aponta seu dedo de esmalte vencido e nos ensina o modo aceitável de usar as palavras.


Reprodução de texto de Sergio Rodrigues na Folha de São Paulo.

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