domingo, 31 de março de 2024

A ditadura militar e da 'burguesia nacional' criou uma sociedade desastrosa


ditadura de 1964-1985 foi de mortos, desaparecidostorturaestupro, exílio, censura, propaganda parafascista, imposição militar de brucutus-presidentes, eleições fictícias, fraudadas ou muito limitadas. A grande massa de analfabetos não votava nem ao menos no elenco de candidatos autorizado pelos brucutus, a casta militar ignorante, bruta e ignara até hoje.

Menos se recorda que foi um período de repressão de sindicatos, de movimentos sociais, em particular os populares; de repressão salarial, de seguros sociais limitados e que excluíam os mais pobres.

Quase pouco se nota, na conversa mais comum, que a ditadura produziu uma sociedade desastrosa, mais do que um desastre social. Por um tempo disfarçada por taxas de crescimento econômico altíssimas, a ruína perdurou.

O que é uma sociedade desastrosa? Um exemplo muito claro são as grandes cidades, embora cidades médias mimetizem o arranjo perverso das metrópoles.

São monstros praticamente inadministráveis. É impossível reformá-las sem grande custo econômico e sem transformação social forte, em um esforço de décadas. São a essência da desigualdade de renda, de patrimônio (propriedade imobiliária), de acesso a serviços públicos, do racismo. O pobre é discriminado até no uso da rua, o que se evidencia no transporte público ruim e nas ruas tomadas por carros.

A grande cidade brasileira é resultado de uma urbanização desastrosa. Por um lado, até meados do século 20, havia uma grande população largada no campo, sem terra, sem escola, sem saúde ou mesmo sem voto. Não tivemos reforma agrária quando isso poderia provocar transformação socioeconômica profunda: multiplicação do número de proprietários, criação de meios de subsistência que poderiam dar pão ao povo enquanto se educavam crianças e jovens, com algum atendimento de saúde, e melhora na distribuição espacial da população.

Por outro lado, a industrialização foi limitada. A partir dos anos 1970, não absorvia o êxodo dos desesperados da miséria rural (e menos ainda depois dos anos 1980 e 1990, com o enxugamento tecnológico do emprego industrial).

A ditadura sobreveio como um modo extremo ou final de impedir esses mínimos progressos: reforma agrária, aceleração da oferta de escola, de direito a voto etc. Extremo, pois a oposição à reforma social é sempiterna no Brasil.

O debate político das reformas possíveis foi interditado nos 20 anos de domínio dos brucutus e de seus beneficiários civis, aquela "burguesia nacional" com a qual a esquerda tanto se preocupa.

A população rural excedente, como se dizia, lotou uma periferia sem casa decente, sem saneamento, sem luz, sem escola. A saúde pública não era universal (não havia SUS). Esse povo vivia de emprego mal pago em serviços ou de subemprego, se tanto. A partir dos anos 1970, mais e mais ficou sujeito à violência e à organização do crime. A partir dos anos 1970, parte desse povo cria as igrejas neopentecostais.

É fácil perceber que o Brasil de agora se formou também na grande aglomeração dos deserdados da sorte rural, na urbanização selvagem.

A ditadura fez muito mais pelo atraso. Criou um sistema em que a "burguesia nacional" vivia de rendas, de proteções contra a concorrência externa (por vezes, também doméstica), de estatais ineficientes, de bloqueios de importação de tecnologia. Criou um sistema de baixa produtividade e ajudou a enraizar o protecionismo. Alimentou a inflação, que se tornou hiper nos primeiros anos da democracia, sob políticas populistas e doidivanas. A estabilização econômica foi um processo que levou quase 15 anos, de 1985 a 1999.

O desastre social brasileiro se entrincheirou entre 1964 e 1985. Parte do povo continua morta e desaparecida sob essa ruína duradoura.


Texto de Vinicius Torres Freire na Folha de São Paulo

sexta-feira, 29 de março de 2024

Sionismo e Israel são projetos coloniais, diz autor considerado herdeiro intelectual de Edward Said


O palestino Yusuf al-Khalidi escreveu em 1899 uma carta para Theodor Herzl, considerado o pai do sionismo moderno. Yusuf se opunha à criação de um Estado judeu na Palestina. Dizia: é habitada por outras pessoas.

Seu sobrinho-trineto faz hoje um alerta semelhante. Em seu livro "Palestina", Rashid Khalidi afirma que o sionismo e Israel são projetos coloniais que culminaram na alienação da população nativa palestina.

Khalidi, 75, é um dos principais intelectuais palestinos desta geração. É de certo modo um herdeiro de Edward Said, autor do estudo clássico "Orientalismo", publicado pela primeira vez em 1978. Assim como ele, leciona na Universidade Columbia, em Nova York.

O livro "Palestina" saiu em 2020 nos Estados Unidos, mas só chega agora ao Brasil, pela editora Todavia. Uma de suas teses centrais é a de que os palestinos são alvos de uma guerra há mais de cem anos. Isto é, desde antes de suas terras darem lugar a Israel, em 1948 —ou da campanha militar lançada na Faixa de Gaza pelo Exército de Tel Aviv em 7 de outubro passado.

A ofensiva, motivada por um ataque do grupo terrorista Hamas ao sul israelense que deixou cerca de 1.200 mortos, já tirou a vida de mais de 32 mil palestinos segundo as contas de autoridades de saúde de Gaza, ligadas à facção. Entidades internacionais ainda acusam Tel Aviv de usar a fome como uma tática de batalha.

"O sionismo é e sempre foi colonial e usou estratégias coloniais, incluindo a compra e a confiscação de terras e a eliminação da população original", diz Khalidi à Folha. Ele também é enfático na sua crítica ao apoio americano a Israel. "Sem os EUA, nada disso estaria acontecendo."

O senhor publicou seu livro em 2020 falando em uma guerra de cem anos contra a Palestina. Há agora uma nova guerra acontecendo.
A tese central do livro se mantém. Temos que enxergar o que está acontecendo em Gaza dentro do contexto de uma guerra mais ampla, que é uma guerra para substituir uma população por outra, apagar a identidade de uma população nativa e tomar o máximo possível de terra.

O livro sugere que o sionismo foi desde o início um projeto colonial.
O sionismo sempre disse que é um projeto nacional, o que não é inteiramente falso. É um projeto nacional de judeus do Leste Europeu. Foi uma resposta à perseguição de judeus de lá, que levou à conclusão de que apenas uma entidade nacional poderia proteger os judeus. Nada disso é falso. Mas o sionismo é e sempre foi colonial e usou estratégias coloniais, incluindo a compra e a confiscação de terras e a eliminação da população original. São os métodos clássicos. Foi o que aconteceu na América portuguesa e espanhola, nas colônias britânicas e francesas. Não há diferença nos métodos. Isso sem contar o fato de que os líderes sionistas diziam isso de um modo explícito. Não tinham dúvida de que eram europeus tomando um país de sua população nativa.

É controverso dizer que o sionismo é um projeto colonial. Por quê?
Devido a uma das campanhas de propaganda mais brilhantes da história que convenceu o mundo, em especial depois do Holocausto, de que a Europa tinha a obrigação de ajudar a criar esse refúgio para os judeus. Há também o argumento bíblico. Protestantes, como nos EUA, creem que há um mandamento divino para os judeus retornarem à terra.

É também controverso dizer que o sionismo é um projeto nacional?
É difícil para muitos aceitar que, com o tempo, uma identidade nacional se desenvolveu entre a população de colonos. É difícil para os palestinos dizerem: os israelenses são um povo e têm direitos, em especial porque esses direitos são exercidos em detrimento dos direitos dos palestinos.

Como essa situação —um projeto colonial e nacional— se resolve?
Há três possibilidades. A primeira é a eliminação da população nativa ou sua redução a um ponto em que podem ser desconsiderados politicamente, como na América do Norte, na Austrália e na Nova Zelândia.
A outra possibilidade é a expulsão dos colonos, que aconteceu na Líbia e na Argélia. A terceira é que os colonos sejam aceitos como nativos ou vivam lado a lado com os nativos. É o que vemos na África do Sul —os colonos perderam sua hegemonia, mas permaneceram. Só que estamos longe disso. Ficamos ainda mais longe com o 7 de Outubro.

O seu livro começa em 1917. Por que o senhor escolheu essa data?
É a data da Declaração Balfour [em que o governo britânico apoiou a criação de um lar judaico na Palestina]. Foi quando tudo isso tomou forma. É a data da intrusão dos britânicos. Sem apoio internacional, Israel não teria sido criado. Até então, sionistas buscavam um patrono. Esse apoio mudou com o tempo. Desde os anos 1960, tem sido os EUA.

Qual papel os EUA têm no que acontece hoje em Gaza?
Os EUA são indispensáveis para o genocídio, para o uso da fome como arma, para a morte de milhares de crianças. Sem eles, nada disso estaria acontecendo. Esse apoio vai mudar agora? Não sei. Mas há uma mudança em curso na opinião pública. Israel nunca terá o apoio global que teve. Isso por conta das redes sociais e da mídia alternativa, em especial entre os mais jovens. O que não significa que a política vai mudar, porque aqueles que tomam decisões não mudaram.

Essa mudança tinha começado antes da guerra, o senhor não acha?
Sim. Tem a ver com a ascensão das redes sociais e o total desprezo pela imprensa tradicional. Há também uma nova geração de ativistas entre os palestinos e árabes. Há, ainda, uma sensação entre muitas pessoas de que a luta palestina é semelhante à deles. Afro-americanos e nativos americanos se dão conta de que é parecido com o que seus avôs viveram: histórias de deslocamento, imigração forçada, discriminação. Reconhecemos uma opressão quando nos deparamos com ela, dizem.

Que papel o Brasil pode ter nesse contexto? Declarações como a do presidente Lula, que falou em genocídio, podem ter algum impacto?
É claro que sim. É necessário um esforço imenso [para alterar a situação]. Quanto mais países mudarem sua posição, haverá mais pressão em Israel e nos EUA. Pode não parecer muito, mas cada país que chama um genocídio de "genocídio" coloca mais pressão.


RAIO-X | RASHID KHALIDI, 75

Nascido em Nova York numa família palestina, cursou seu doutorado na Universidade Oxford. Historiador, leciona na Universidade Columbia. É autor de importantes estudos sobre Palestina.


Reportagem e entrevista a cargo de Diogo Bercito na Folha de São Paulo.

sexta-feira, 15 de março de 2024

Quem censura livro anda de quatro


"Toda censura é burra" é uma máxima de origem incerta que pertence ao patrimônio de sabedoria coletiva da espécie. É incontestável. Toda censura é de uma estupidez zurradora e babona, e essa notícia não podia ser mais velha.

Segundo o pesquisador Eric Berkowitz, autor de "Dangerous Ideas" (Ideias perigosas), uma história da censura, a primeira queima registrada de escritos ocorreu em 430 a.C. com a obra do filósofo grego Protágoras, que punha em dúvida a existência dos deuses.

Por que, então, a censura ainda é capaz de ser notícia no século 21, como se comprova na atual perseguição aos romances "O Avesso da Pele" (Companhia das Letras), de Jeferson Tenório, e "Outono de Carne Estranha" (Record), de Airton Souza?

A resposta é óbvia: porque a burrice é uma constante na história humana em geral e na brasileira em particular. Não só os comedores de alfafa não saem de moda como, em certos momentos e lugares, experimentam picos de poder e popularidade.

Para quem andou distraído: o livro de Tenório, uma delicada história sobre racismo, e o de Souza, que trata com sensibilidade da relação homossexual entre dois garimpeiros de Serra Pelada, têm sofrido sanções diversas.

Ambos são êxitos literários reconhecidos pela parte do Brasil que não anda de quatro. "O Avesso...", realização de um autor jovem mas maduro, levou um Jabuti e virou best-seller. "Outono...", obra de estreia, conquistou o (até então) prestigioso prêmio Sesc de romance.

Nada disso impediu o livro de Tenório de, depois de "denunciado" por uma diretora de escola do interior gaúcho, ser recolhido da rede pública de ensino por determinação de três secretarias estaduais de Educação –no Paraná, em Goiás e no Mato Grosso do Sul.

A alegação ­–grotesca– é que os alunos do ensino médio se chocariam com alguns palavrões esparsos. Do ensino médio, pois é. Fica evidente o oportunismo político, jogo de cena para eleitores de extrema direita.

O caso do livro de Souza é mais curioso, pois envolve um tiro de escopeta desferido no próprio pé por quem deveria promovê-lo. Chocada com a leitura pública feita pelo autor na última Flip, a direção do Sesc decidiu jogar no lixo a reputação conquistada por um prêmio que era, disparado, o mais importante do país para obras inéditas.

Cancelou a agenda de divulgação dos vencedores do ano passado –o que inclui o belo volume de contos "O Ninho", de Bethânia Pires Amaro, que nada tinha a ver com a história– e demitiu o curador do prêmio, o escritor Henrique Rodrigues, fiador de seu sucesso ao longo de duas décadas.

Ao fazer isso, põe em risco a parceria com a editora Record, que manifestou "extremo incômodo" com o ocorrido. E levanta a suspeita de que terá filtros político-ideológicos para os premiados de agora em diante –o que, como jurado de contos em 2023, posso atestar que não havia. Em resumo, o prêmio Sesc teve um surto de pânico homossexual, pulou no abismo e, se já não morreu, está em coma.

É burrice ou não é? Burrice máxima, e em série. Enquanto isso, os livros que os censores tentam proibir vendem cada vez mais, despertam cada vez mais interesse –toda censura acaba por boicotar a si mesma.

E ainda fomenta a burrice de quem, diante desse involuntário estímulo comercial, acha que ela pode ser relativizada como benéfica, sem entender que o mal feito à liberdade é um mal absoluto, um crime absoluto, a ser repudiado de forma absoluta.


Texto de Sergio Rodrigues na Folha de São Paulo

sábado, 9 de março de 2024

O nome disso não é genocídio, ok?


É preciso ter cuidado com as palavras, usá-las com a maior precisão possível. Outro dia, no bairro carioca da Gávea, presenciei uma cena comovente. Um menino magro e maltrapilho de cinco ou seis anos interpelou uma senhora bem-vestida que saía do supermercado cheia de sacolas e disse: "Me paga um lanche, tia? Dois dias que eu não como".

Não ganhou dinheiro para comer, mas algo até mais valioso, uma lição que o acompanhará pelo resto da vida –medida de tempo talvez curta, paciência. "Me paga, não! Não se começa frase com pronome oblíquo átono", respondeu a mulher, antes de seguir seu caminho reto e tônico.

Outro exemplo de uso desleixado da linguagem que a mulher poderia apontar: chamar de genocídio o que ocorre em Gaza. Parece que isso contraria, além de muitas sensibilidades e a orientação da Casa Branca, também a definição jurídica da palavra. Mas há alternativas.

Pode-se rotular o massacre metódico de civis palestinos promovido por Israel de "banho de sangue", por exemplo. É difícil fazer ressalvas a uma expressão tão precisa para nomear o extermínio de mulheres, bebês, crianças, adolescentes e velhos em suas casas, hospitais e campos de refugiados, acompanhado do veto a toda tentativa de ajuda humanitária.

Uma vantagem de "banho de sangue" é que, não havendo sinal de sangue quando se asfixiam seres humanos em câmaras de gás, eventuais paralelos com o Holocausto ficam descartados de saída, impedindo o falante de incorrer no crime retórico que fez o presidente brasileiro ser declarado "persona non grata" pelo moralmente inatacável governo israelense.

É verdade que a expressão "banho de sangue" pode ecoar, na mente de quem a ouve ou lê, outros massacres de populações indefesas, como os que vitimaram os armênios na Primeira Guerra Mundial e os tútsis de Ruanda nos anos 1990. Em ambas as ocasiões correu sangue à beça, como em Gaza. O problema é que desse modo a indesejada —e teimosa— palavra "genocídio" voltaria à boca de cena. Pensando bem, melhor buscar outra solução.

Quem sabe a velha carnificina dê conta do recado? Ou chacina, hecatombe, açougue? Faxina étnica é melhor evitar, por mais que substantivo e adjetivo pareçam encaixáveis entre si e com a realidade, mas o vocabulário da desumanidade e da matança voluptuosa está longe de ser limitado.

Razia, carnagem, morticínio ­­– são muitas as opções lexicais à disposição do falante que tem achado difícil tocar sua vida normal enquanto vê na tela do celular, quase em tempo real, vidas inocentes serem trucidadas aos magotes, dia após dia, diante de uma humanidade apática ou impotente.

Algum desconforto é natural: nunca tínhamos passado exatamente por isso depois que nos interconectamos. E é claro que pessoas decentes não querem ser acusadas de antissemitismo – palavra que, esta sim, tem sido usada com imprecisão obscena em cobranças de rendição moral incondicional, como se criticar o governo de Israel equivalesse a defender o indefensável terrorismo do Hamas.

É só que não acham correto, essas pessoas apegadas a velhos valores humanistas, que o povo palestino seja tratado como uma colônia de cupins por um governo supremacista de extrema-direita enquanto assistimos a tudo calados, reféns de Biden, Netanyahu e outros filhos de uma égua, ou medindo vocábulos feito tartamudos diante da madame da Gávea que nos aponta seu dedo de esmalte vencido e nos ensina o modo aceitável de usar as palavras.


Reprodução de texto de Sergio Rodrigues na Folha de São Paulo.