sexta-feira, 8 de novembro de 2024

As instituições e o Prêmio Nobel


Acemoglu, Robinson e Johnson ganharam o Prêmio Nobel de Economia neste ano. Em 2001, eles explicaram o atraso dos países em relação aos países ricos com a tese de que os países que se atrasaram não foram colônias de povoamento como foram os Estados Unidos ou a Austrália. Estavam em parte corretos, porque essa foi a tese clássica de Caio Prado Júnior. Não discutirei aqui esse trabalho.

Em 2005, eles "descobriram" que o atraso dos países periféricos em relação aos países centrais poderia ser explicado pelo fato de suas instituições não terem garantido suficientemente a propriedade e os contratos e, assim, haverem desestimulado os empresários a investir. Estavam, neste caso, errados.

Afirmar a importância de boas instituições para o desenvolvimento é a mesma coisa que dizer que a água é importante. É óbvio que as instituições —as normas que organizam a vida social— são fundamentais.

A questão real não é essa, mas sim se faz sentido usar as instituições para explicar o atraso em vez de considerar as estruturas sociais, como eles fizeram sem saber no trabalho anterior. Elas nos dizem, no caso do atraso, se o país teve uma colonização de povoamento ou de exploração mercantil, como nos países latino-americanos.

Nos primeiros, formou-se logo uma classe média e a evolução para o capitalismo foi quase natural, enquanto nos países periféricos o caráter tradicional da sociedade e a condição colonial ou dependente se mantiveram por muito tempo; no caso da dependência, até agora. Nos dizem qual foi o peso do escravismo em cada sociedade.

O que os novos nóbeis de Economia —ou a escola novo-institucionalista à qual pertencem— subestimam é que as instituições são endógenas. Elas dependem das estruturas sociais; elas mudam conforme mudam essas estruturas.

A partir do livro de 1990 de Douglas North, "Instituições, Mudança Institucional e Desempenho Econômico", o institucionalismo se transformou em uma teoria de desenvolvimento. Surgiu, não por acaso, em torno de 1980.

Foi nesse momento que os Estados Unidos e os demais países ricos fizeram a "virada neoliberal" e perceberam que as instituições eram uma forma muito mais cômoda de explicar o atraso da periferia. Dessa maneira, a nova escola livrava-se não apenas de questões estruturais mais difíceis de mudar mas também do imperialismo ao qual os países periféricos foram e continuam sendo submetidos.

A tese novo-institucionalista da propriedade e dos contratos parece verdadeira à primeira vista, mas realmente não faz sentido.

Tomando-se como referência os primeiros anos do século 19: como seria possível comparar países em que a estrutura social era tradicional e a população em grande parte indígena ou descendente de escravos com a estrutura social de países como os Estados Unidos ou a Austrália?

Dar importância às instituições sem considerar as estruturas tornou mais fácil para o centro neoliberal definir o que os países periféricos deveriam fazer. Bastaria fazer as reformas institucionais —privatizar, desregular, liberalizar— e tudo seria resolvido.

Há ainda a considerar que em países de renda média é comum haver instituições mais modernas e adequadas do que nos países em desenvolvimento. Nós, por exemplo, temos a regulamentação dos medicamentos genéricos que poucos países ricos têm. Na Grã-Bretanha, a obtenção de documentos é mais demorada do que no Brasil. Nos Estados Unidos, o uso de armas de fogo é permitido senão incentivado.

Mudar as instituições é fácil, mudar as estruturas é mais difícil, e o país se livrar do imperialismo é mais difícil ainda. Muito mais fácil é realizar as reformas neoliberais, principalmente a completa liberalização comercial e financeira. O centro não quer o desenvolvimento da periferia; ele não quer que esta produza bens com mão de obra barata para com ele concorrer e quer manter a troca desigual entre manufaturas e commodities.

Sim, as instituições, assim como a água, são importantes. É impossível viver sem elas, mas assim como por trás da água estão as nascentes, por trás das instituições estão as estruturas econômicas e sociais.


Texto de Luiz Carlos Bresser-Pereira publicado na Folha de São Paulo

domingo, 3 de novembro de 2024

Vivemos uma epidemia de solidão


A cidade de Seul acaba de anunciar que vai investir US$ 327 milhões para combater a solidão. A capital sul-coreana é a mais nova integrante do clube de governos que estão combatendo isolamento social com política pública.

O dinheiro vai ser aplicado de várias formas. A cidade vai oferecer apoio psicológico gratuito para todos os residentes, além de um serviço emergencial chamado "Adeus, Solidão". Fez parceria com os aplicativos de delivery para identificar as pessoas que vivem sozinhas. Vai dar incentivos a quem participar de atividades sociais, incluindo visitar bibliotecas, festivais, parques e restaurantes.

Em Seul, as "mortes por solidão" têm crescido ano a ano. O fenômeno afeta principalmente homens (84% dos casos) na faixa dos 50 e 60 anos (50% dos casos).

Seul não está sozinha no problema. O Japão enfrenta há anos a crise dos "hikikomori", jovens que romperam vínculos e vivem isolados. Há 1,5 milhão deles, muitos vivendo no próprio quarto. O problema está em todas as idades. A onda agora são os "8050". A expressão se refere a pessoas reclusas na faixa dos 50 anos que dependem da ajuda dos pais de 80. Para combater tudo isso, o Japão tem criado centros de apoio, excursões turísticas para promover vínculos e até ajuda financeira supervisionada para reintegração social.

Quem leu até aqui pode achar que o problema é maior na Ásia. Nada disso. Em 2018, a Inglaterra criou o seu Ministério da Solidão (o nome oficial é Subsecretaria de Estado para a Solidão), que já teve quatro integrantes. A solidão cresce no país em todos os segmentos, especialmente entre 16 e 29 anos.

Nos EUA, o problema é similar. Em 2023, o cirurgião-geral (porta-voz do governo para saúde) anunciou com todas as letras que o país vive uma epidemia de solidão. Criou um plano para "reparar o tecido social", baseado na constatação que um a cada dois americanos alegam sofrer de isolamento social.

Para quem ainda não está convencido é só olhar para a OMS. Em 2023 a Organização Mundial de Saúde decretou a solidão como prioridade global de saúde. Criou inclusive a Comissão de Conexão Social para tratar o problema, com representantes de vários países como Chile, Japão, Suécia e EUA (o Brasil ficou de fora).

Os dados publicados pela OMS são chocantes. Em pesquisa global feita pelo Gallup em 142 países, uma a cada quatro pessoas enfrentam solidão severa e o mesmo número enfrenta solidão moderada. Curiosamente os menos solitários são os mais velhos (mais de 65 anos). Já os mais sozinhos são os jovens entre 19 e 29 anos. 27% deles com solidão severa e 30% moderada.

O dano da solidão acontece em várias camadas, físicas e mentais. Um estudo de 2022 apontou que o efeito de estar sozinho para a saúde equivale a fumar 15 cigarros por dia (o equivalente em nicotina a mascar 10 sachês de Zyn, a nova tendência do momento). O Brasil não está de fora. Pesquisa IPSOS de 2021 apontou que o país ocupava o 1º lugar entre entre os que mais sentem solidão. Está na hora de reparar o tecido social aqui também.

Reader

Já era – achar que solidão é problema pessoal

Já é – perceber que solidão é problema estrutural

Já vem – criar iniciativas públicas e privadas capazes de reforçar laços sociais


Reprodução de texto de Ronaldo Lemos na Folha de São Paulo.

quarta-feira, 30 de outubro de 2024

Pela última vez


O poeta Antonio Cicero foi à Academia Brasileira de Letras, da qual era membro, no dia 10 último. Naquela quinta-feira, subiu ao segundo andar do Petit Trianon, participou do chá informal que antecede a reunião e, quando esta se iniciou, sentou-se em seu lugar de sempre, entre mim e o historiador Arno Wehling. Como fazia havia algum tempo, assistiu em silêncio aos trabalhos. Ao contemplar as paredes centenárias, os funcionários da Academia e os confrades, por quem era muito estimado, sabia que aquela seria a última vez. Nós é que não imaginávamos que nunca mais o veríamos.

No dia 18, com seu companheiro há 40 anos, o figurinista Marcelo Pies, Cicero saiu de seu prédio na rua David Campista, no Humaitá. Tomaram um táxi para o Galeão, desembarcaram em Paris de manhã e Cicero foi a seus museus e livrarias favoritos na cidade que era também sua. Dois dias depois, partiram para Zurique, na Suíça, onde tinha um encontro com os médicos que o acompanhariam quando se autoadministrasse um remédio indutor do sono que, em meia hora, faria seu coração parar. Era a "morte assistida", o procedimento a que se decidira havia um ano, quando os exames determinaram que sofria da doença de Alzheimer.

Cicero não queria que o Alzheimer cumprisse seu terrível ciclo de perda da memória e, de repente, da razão. Chegara àquele estado fronteiriço, em que ainda se consegue perceber a proximidade da demência —e, por percebê-la a tempo, optou por derrotá-la, antecipando-se a ela. Em um mês ou dois, talvez essa percepção já não lhe fosse possível.

Em casa, antes de partir, qual terá sido o último livro que leu? E o último poema? Ao contemplar seus objetos, suas estantes, seu gato Homero, sabia que era uma despedida. O que terá sentido ao fechar a porta do apartamento, descer à rua e entrar naquele táxi que, no fundo, era um táxi para Zurique? E, depois, como ele acreditava, para o lugar nenhum.

Não sei. Só sei que seu gesto calou fundo entre nós, seus colegas da Academia, e nos fez admirá-lo ainda mais, agora por sua coerência. Afinal, um dia ele escrevera: "Eis o que torna esta vida sagrada:/ Ela é tudo, e o resto, nada."


Texto de Ruy Castro na Folha de São Paulo

terça-feira, 22 de outubro de 2024

Sua majestade, o eleitor: ou por que votamos em tiranos?


Véspera de eleição e a pergunta que insiste é: por que galinha vota em raposa? Queremos entender por que mulheres votam em agressores e por que contribuintes entregam seus impostos a corruptos. Pergunta de um milhão de dólares que sociólogos, historiadores e psicólogos vêm tentando responder com mais afinco a partir da Primeira Guerra Mundial, momento no qual ficou claro que o ideal iluminista tinha saído pela culatra. Quanto mais o Ocidente se arvorava como a parte civilizada da humanidade, quanto mais apostava no controle dos impulsos pela força da razão, mais se afogava em sangue fratricida. O plano que supõe que a vontade dominaria nosso desejo ingovernável carece de ser combinado com os russos.

A contribuição psicanalítica nessa contenda é centenária, posto que o surgimento da psicanálise é contemporâneo da derrocada civilizatória ocidental. Embora nossa civilização, imperialista, escravocrata e feminicida, já fosse baseada no horror, a ficha só começa a cair quando a brutalidade é encenada dentro do velho continente. A imagem associada aos "selvagens" do sul global, que servia de antítese para os ideais racionalistas, empalidece diante da carnificina da Primeira Guerra Mundial.

Mas, afinal, por que seguimos líderes que nos prejudicam e nos fazem rumar em direção ao pior? Puxarei apenas um fio da meada dessa discussão, cuja complexidade não será contemplada aqui. Para Freud, a criança pequena vive a experiência primordial de se considerar "sua majestade, o bebê". Isso significa que há um momento no qual ela acredita ser o centro do universo. Estamos falando de como a fantasia onipotente serve para mascarar o desamparo inicial, com o qual a criança ainda não pode lidar. Mas se engana quem pensa que a constituição psíquica é feita de fases do desenvolvimento a serem alcançadas e superadas, como numa lista de supermercado à qual damos "check". Trata-se de um processo contínuo de reconhecimento de que somos seres desamparados, finitos e que, vez por outra, mesmo adultos, apelamos à miragem de um salvador, aquele que não estaria inteiramente constrangido pelos limites da realidade.

Políticos autoritários, por outro lado, ao encarnarem aspirações megalomaníacas, fazem valer na forma de privilégios ou do franco abuso de poder o lugar da majestade, que todos fantasiamos um dia ter vivido. E são esses que nos servem de modelo, acenando com a miragem de um trono sempre pronto a ser ocupado por um de nós. Os ideais igualitários, coletivistas, comunitários ferem de morte nossas aspirações delirantes de um dia reinarmos absolutos sobre os demais. Manter alguém ocupando o lugar de exceção é manter o próprio lugar de exceção como virtualmente acessível a nós.

A resistência do cidadão comum à taxação de grandes fortunas, por exemplo, que atingiria uma parcela ínfima da população, vai além da ignorância. Ela é tão irracional quanto as fantasias inconscientes que nos impulsionam, aquelas que os iluministas acreditavam poder controlar. As redes sociais manipulam e potencializam nossa megalomania infantil, criando efeitos coletivos até então inéditos. Domingo próximo é dia de eleição, o que não deixa de ser um tipo de psicodiagnóstico social.



Texto de Vera Iaconelli na Folha de São Paulo.

De Gaza ao Líbano: um mundo de impunidade


Uma perturbadora erosão gradual e constante das normas universais do direito internacional tem ocorrido nas últimas décadas. Diversos conflitos armados recentes têm desintegrado completamente os sistemas de proteção da população civil.

No mais grave e longevo desses conflitos, o Estado de Israel, à guisa de se defender do Hamas, em um ano destruiu na Faixa de Gaza todas as escolas, hospitais, universidades, mesquitas, igrejas, arquivos, museus. Cerca de 1,9 milhão de habitantes foram deslocados de suas casas. Quase 2% da população foi morta pelos bombardeios israelenses —60% dessas 42 mil vítimas são crianças, mulheres e idosos a partir de 60 anos.

No final do mês de setembro, a escalada de ataques, iniciada em 8 de outubro de 2023 entre Israel e o grupo não estatal armado libanês Hezbollah, se agravou. Em 27 de setembro último, sem aviso prévio, Israel lançou mais de 80 bombas de 2.000 libras num bairro no sul de Beirute, destruindo seis prédios de apartamentos e resultando na morte do secretário-geral do Hezbollah, Hassan Nasrallah. Seguiram-se 1.700 bombardeios no Líbano, inclusive, recentemente, no centro de Beirute. No total, 1,2 milhão de pessoas foram deslocadas, 2.083 mortas e 10 mil feridas desde outubro passado, a maioria nas últimas três semanas. Israel atacou soldados da Força Interina das Nações Unidas no Líbano (Unifil) sob protestos de 40 países, inclusive do Brasil.

Tudo antes da morte do líder do Hezbollah, considerada pelos EUA como "medida de justiça", parece ultrapassado. Mas, para as vítimas, o passado recente continua sendo o presente. Como foram as explosões em 17 e 18 de setembro no Líbano, e também na Síria, em pagers e walkie-talkies, atribuídas a Israel —visando o Hezbollah, mas que atingiram 3.500 libaneses, com 42 mortes. Perderam ambos os olhos 300 pessoas e, 500, uma das vistas. Houve registros de lesões graves na cintura e no rosto das vítimas, além de mãos amputadas.

Os ataques, a quem estava de posse dos dispositivos visados, violaram o direito internacional dos direitos humanos e humanitário, avaliou o alto-comissário de direitos humanos da ONU, Volker Turk. Apesar disso, as potências ocidentais que apoiam Israel não condenaram esses ataques. As reações da mídia internacional foram de um fascínio indecente, com o feito considerado "inovador" e "audacioso".

Era de se esperar que os ataques de Israel contra o Líbano gerassem protestos aqui, visto o Brasil ter a maior comunidade de libaneses e descendentes fora do país do Oriente Médio —entre 7 e 10 milhões de pessoas.

Ledo engano. Diante desses horrores, as entidades da sociedade civil brasileira não se manifestaram. Caladas durante um ano quanto ao genocídio em curso em Gaza —cuja plausibilidade foi constatada pela Corte Internacional de Justiça—, guardam um obsequioso silêncio sobre a desesperadora situação no Líbano.

Mas uma vez nos salva desse constrangimento internacional o governo brasileiro, que condenou com veemência os ataques aos pagers e denunciou as operações militares de Israel no sul do Líbano como violação ao direito internacional, à Carta da ONU e a resoluções do Conselho de Segurança.

Acontecimentos como os ocorridos em Gaza, no Líbano e em diferentes partes do mundo solapam a aplicabilidade universal de normas e mecanismos internacionais decisivos para a proteção das populações civis.

Urge que a sociedade civil brasileira se dê conta, como há dias disse António Guterres, secretário-geral da ONU, do "mundo de impunidade" que ameaça os fundamentos da lei internacional.


Reprodução de texto de Paulo Sérgio Pinheiro publicado na Folha de São Paulo

segunda-feira, 7 de outubro de 2024

O dom das lágrimas é uma reação espontânea diante da visão da graça


No final do romance "Diário de um Pároco de Província", de Georges Bernanos, da editora É Realizações, o personagem narrador, protagonista, um padre, no fim do seu suplício, diz, de forma aliviada: "Tudo é graça". Deus age no mundo através da graça.

Conceito de alta credencial na teologia cristã, objeto de polêmicas densas, envolvendo grandes figuras como Santo Agostinho, Pelágio (séculos 4º e 5º), o jesuíta Luís de Molina (século 16) e o filósofo Blaise Pascal (século 17), a graça pode ser compreendida como algo à disposição de todos, como no entendimento de que a criação é pura graça, ou, ao contrário, pode ser compreendida como algo restrito a alguns pouquíssimos eleitos que têm o dom sagrado de percebê-la à sua volta —incluindo aqueles que conseguem ver que a criação é pura graça.

A fala do protagonista do romance aqui citado pressupõe que tudo que existe é graça, mas, nem por isso, todo mundo —ele mesmo, há quem argumente, só percebe isso claramente no leito de morte— enxergaria a graça no mundo. Essa forma de compreensão é típica dos estudos de mística e espiritualidade. Aqui a percepção é rara e restrita.

Há algo de importante a acrescentar, antes de avançarmos numa das formas reconhecidas pela literatura especializada no assunto, e por pessoas que, aparentemente, apresentam um "sintoma" específico de quem foi tocado por esse dom da graça. Afinal, qual seria esse "sintoma de Deus"?

Seja para Santo Agostinho, seja para Pascal, o dom de ver a graça ou recebê-la, simplesmente, não implica mérito por parte de quem recebe o dom —questão que levanta fúria para muitos teólogos até hoje. Esse traço constitui um elemento surpresa para o "eleito". Essa surpresa significa que a pessoa que recebe o dom pode nem ser religiosa ou nem compreender de cara o que se passa com ela.

Nesse sentido, o teólogo jesuíta suíço Hans Urs von Balthasar (1905-1988), no seu livro dedicado às santas Teresa de Lisieux e Elisabeth de Dijon, "Schwestern im Geist", ou irmãs no espírito, descrevendo o que ele chama na obra de "teologia existencial", chama a atenção para uma fenomenologia da graça em que, num dos casos de sua manifestação na santidade, ela o faz de forma inesperada, um psicólogo diria "invasiva" —ele não diz isso—, o que leva o santo a ter de se ver com o fato de que a graça habitará sua vida e sua alma para sempre, "sem ter sido convidada".

Esse caráter da manifestação "não convidada" de Deus, aparece também na obra do filósofo judeu Abraham Joshua Heschel (1907-1972), quando ele diz que "Deus o persegue pelas ruas", até pelos cafés, como uma tempestade que de repente cai sobre ele e que, sob essa ação, ele parece adentrar um "antigo santuário" que pede silêncio absoluto.

O português é um idioma feliz para entender um traço definidor da graça: a graça é de graça —redundância necessária. A rigor, tudo o que Deus faz é de graça, na medida em que ele o faz sem qualquer condicionamento prévio: não faz porque precisa fazê-lo.

Não criou o homem e a mulher porque ele precisava de companhia na sua vida "vazia". Esse caráter não motivado por qualquer necessidade nas ações de Deus se constitui num dos grandes mistérios para quem busca entender a "personalidade" de Deus e suas "intenções" ao agir da forma que age. Deus é reconhecidamente imprevisível nas narrativas bíblicas e isso incomoda muita gente.

E qual é esse "sintoma de Deus" lembrado aqui? "Bem aventurados os que choram, porque serão consolados." Eis um fundamento bíblico do "dom das lágrimas" —"gratia lacrymarum" em latim medieval. Uma reação fisiológica espontânea e incontrolável em que a pessoa que possui esse dom chora copiosamente quando enxerga a graça no mundo, em meio a sua desgraça.

Não se trata de tristeza nem propriamente alegria, mas, sim, a percepção da beleza de Deus e sua doçura no mundo, percepção essa rara e para poucos. Essa beleza infinita dispara na pessoa que recebeu esse dom das lágrimas, contra sua vontade e sem propriamente entender o porquê, o choro sagrado.

Há uma vasta literatura sobre o tema. Destaco para os leitores de francês um dos melhores, "Le Don des Larmes au Moyen Âge", ou o dom das lágrimas na Idade Média, escrito pela historiadora Piroska Nagy.

As lágrimas podem vir diante do comportamento de uma pessoa que demonstra rara generosidade, diante de um cenário sublime da natureza, diante do silêncio de um "antigo santuário", como diz Heschel, enfim, diante de uma pessoa que não joga o jogo do mundo. Os tocados por esse "incômodo" dom, hoje, normalmente, aprendem a dissimulá-lo ao longo da sua vida.


Texto de Luiz Felipe Pondé na Folha de São Paulo

sábado, 21 de setembro de 2024

Mais um assassinato em uma terra indígena já homologada


Caro brasileiro, venho trazer mais uma triste notícia para nós. Mais um jovem irmão indígena foi brutalmente assassinado em Mato Grosso do Sul. Na quarta (18), Neri da Silva, 23 anos, recebeu um tiro na cabeça durante ataque da Polícia Militar contra uma comunidade da Terra Indígena Ñanderu Marangatu, em Antônio João. Os indígenas filmaram a ação, que começou com um tiroteio por volta de 6h com a chegada do Batalhão de Choque.

A Ñanderu Marangatu é reconhecida como território tradicional e foi homologada em 2005 pelo presidente Lula, mas sua demarcação está paralisada nas mãos de Gilmar Mendes. Enquanto isso, ela continua ocupada pela família de Roseli Ruiz.

O ataque ocorreu um dia após a Aty Guasu, organização dos guarani-kaiowás, protocolar no Ministério da Justiça um pedido de providências urgentes diante da grave situação. Ao menos quatro indígenas já foram assassinados na luta pelo reconhecimento daquele território.

Mato Grosso do Sul tem sido palco de um cenário de racismo institucional, violência sistêmica e discriminação contra os povos indígenas, com inúmeros ataques orquestrados por fazendeiros e forças de segurança locais que se acirraram com a promulgação da Lei do Marco Temporal.

No STF, a invasora da área onde Neri foi assassinado é apresentada como "especialista" para a próxima audiência de conciliação sobre o Marco Temporal.

Você, brasileiro, sabia que seu país é o segundo na lista dos que mais mataram ambientalistas? E metade desses assassinados são indígenas. As organizações indígenas cobram medidas das instituições do Estado, mas são ignoradas.

O que acontece há décadas tem a anuência, quando não o apoio, de maus governos, nas diferentes esferas, que, para nos matar, se servem de suas forças policiais e das leis que eles próprios criam.

Claramente querem seguir com os megaprojetos —petróleo na Amazônia, pavimentação da BR-319, construção da Ferrogrão— mesmo diante do colapso climático. Falam em acabar com as queimadas, prometem uma autoridade climática, mas não garantem a demarcação dos territórios indígenas, o nosso direito à vida. O Congresso tem um plano para acabar de vez com os povos indígenas, tomar nossas terras, transformá-las em mercadoria e seguir com seus projetos de exploração.

São todos projetos de destruição, por mais que os interessados tentem esconder isso com mentiras, que busquem enganar com suas falsas preocupações, por mais que digam que é em favor de toda a população, enquanto multiplicam por mil os seus 30 milhões de apoiadores.

A verdade é que esses projetos de morte vão contra os povos originários, contra suas comunidades, suas terras, seus rios, seus animais, suas plantas. Isso porém afeta não só indígenas mas toda mulher, todo homem, toda criança, todo jovem, todo idoso, todo ser vivo que compartilha dessa grande casa.

O que se pretende chamar de "progresso" é uma mentira que protege a invasão e a propriedade privada e legitima nosso genocídio.

Quantos dos nossos caciques, líderes espirituais, guerreiros, guerreiras e guardiões da floresta foram assassinados em nome desse "progresso"?


Reprodução de texto de Txai Suruí na Folha de São Paulo.

sexta-feira, 20 de setembro de 2024

Em breve, armas de fogo nos debates


Em 1890, com o aperfeiçoamento em Londres dos motores a combustão, das baterias elétricas e do aço, tornou-se possível a construção dos submarinos, longamente sonhada. Eles seriam invencíveis numa guerra naval, por navegarem submersos e poderem atacar de surpresa os navios inimigos. A ideia foi levada à rainha Vitória, que se chocou: "O quê!? Vamos atacar sem antes mostrar nossas cores???". Foi preciso Vitória morrer para o primeiro submarino ir à guerra.

Por cores, a rainha queria dizer bandeiras. Elas eram indispensáveis nas batalhas do passado, como a Guerra dos 100 Anos, na Europa do século 14. As companhias de arqueiros a pé se punham em formação na planície, tocavam os tambores e agitavam as bandeiras. Só aí atiravam as flechas e marchavam uma contra a outra para o embate a espada. Então surgiram os primeiros canhões, mas o fairplay e a elegância continuaram —só faltavam ser disparados com hora marcada. Vide o delicioso "A Companhia Branca", de 1892, por Arthur Conan Doyle.

Da mesma forma, os antigos embates políticos, inclusive no Brasil. Os litigantes se chamavam de Vossa Excelência e iam-se mutuamente às carótidas na tribuna, mas com torneios de witticisms, frases de espírito. O campeão era o então vereador pelo Rio, Carlos Lacerda, na redemocratização de 1946. Num bate-boca com o já terrível Carlos, um adversário disparou: "Vossa Excelência é um purgante!". Lacerda: "E Vossa Excelência é o resultado desse purgante!". Anos depois, Lacerda fez uma citação em francês e o deputado Roland Corbisier, também filósofo, zombou de sua pronúncia. Lacerda respondeu com uma insinuação finíssima, mas mortal: "Infelizmente, não sou filho de mãe francesa." No Rio daquele tempo, todos entendiam o que isso queria dizer.

Nas guerras modernas, até as populações civis morrem sem saber de onde veem os ataques —por bombas atômicas, mísseis, drones e, agora, pagers e walkie-talkies. Da mesma forma, os políticos não trocam mais frases de espírito. Vão direto às ofensas, mentiras, provocações e, em última instância, cadeiradas.

Para que intermediários? Em breve, armas de fogo nos debates.


Texto de Ruy Castro na Folha de São Paulo.

sábado, 10 de agosto de 2024

A pulseira de prata


Ao chegar do campo no fim do dia, em Diamantina, Minas Gerais, fui recebida pelo dono da pensão apreensivo com um recado que recebera para mim. Não sei qual a combinação de meios de comunicação minha mãe usou, certamente incluiu tambores e sinais de fumaça, para me encontrar nas entranhas do Brasil no início dos anos 80. O recado dizia que eu deveria ligar para ela, em Porto Alegre.

Depois de longa espera na central telefônica local, numa péssima ligação cheia de ruídos e interferências, consegui compreender que meu pai tinha tido um AVC, estava hospitalizado e com o lado direito do corpo paralisado. Não corria risco de vida, mas minha presença em Porto Alegre era necessária.

Minha mãe sempre ficava sem ação perante as emergências médicas da família. Quando a minha avó ainda estava por aqui, era ela quem providenciava tudo, desde os primeiros socorros até o encaminhamento para a emergência de algum hospital. Na falta da minha avó, e, mesmo longe, eu passei a ser convocada para gerenciar este tipo de problema.

Certa de que levaria mais de 24 horas para chegar, na manhã seguinte consegui que um carro da empresa, com motorista, me levasse até Belo Horizonte. De lá segui até o Rio de Janeiro, onde eu estava lotada na época. No Rio, troquei as roupas de campo por agasalhos de inverno, e segui para Porto Alegre.

Sempre tive a certeza que nada aconteceria de mal com meu pai. Afinal de contas ele ainda era para mim aquela fortaleza indestrutível, na qual sempre me apoiei nos tempos difíceis, que me estimulou a perseguir os meus sonhos, segurou a família da minha mãe quando decidi estudar geologia e que me deu uma Beretta 7.35 de presente de formatura, para defesa pessoal. Era meu esteio e exemplo de vida. Aquele homenzarrão de quase dois metros de altura tinha que ser no mínimo imortal, mesmo aos seus sessenta e poucos anos, pensava eu. 

Me lembrando da sua voz tonitruante e das suas gargalhadas, enquanto dançava sozinho na sala, para desespero da minha mãe, preocupada com o que os vizinhos diriam, viajei tranquila, certa que ele se recuperaria logo.

Não estava preparada para vê-lo no hospital com o lado direito do corpo paralisado, falando e enxergando mal. Ele precisava de auxílio até para se alimentar, mas minimizava o seu estado na minha frente e eu fazia o mesmo para ele. Brincávamos de faz de conta, enquanto aprendíamos a lidar com a nova situação. O choque me fez ver que era a minha vez de estimulá-lo e incentivar a fazer os exercícios de fisioterapia, assegurando a ele que daquilo dependia a sua recuperação – embora eu, por desconhecimento, não acreditasse muito.

As posições tinham se invertido, meu pai era agora um ser frágil e dependente. Meu apoio moral passou a ser fundamental.

Fiquei na casa dos meus pais por cerca de dez dias, acompanhando meu pai no hospital e tratando de assuntos legais – ele não podia mais assinar cheques.

Nesse período pude verificar seu progresso no domínio dos movimentos do braço e perna direitos, devido à fisioterapia diária. Passei a incentivá-lo, assim como ele fez comigo durante toda a vida. Consultada, a fisioterapeuta dizia que a motricidade fina seria recobrada com brinquedos de armar, destes que se compram para crianças de 5 a 7 anos. 

Antes de viajar comprei diversos esqueletos de dinossauros para montar. Inicialmente meu pai dizia que eram coisas de criança e que eu o estava infantilizando. Sem falar nada, montei o primeiro na sua frente. Desmontei e o deixei lá.

Saindo para voltar para o Rio, vesti uma pulseira de prata que eu sempre usava. Na sua frente, comentei que o fecho era difícil de trancar e que, quando eu voltasse para a próxima visita eu queria que ele a fechasse no meu pulso. Ele riu e prometeu que faria. 

Escondida dele, minha mãe contava que a montagem dos esqueletos de dinossauro tinha se tornado o seu passatempo preferido, atividade cujo progresso era aferido por ele por meio de um cronômetro.

De longe, passei a acompanhar o seu progresso. Recuperou completamente os movimentos e, três meses depois, quando voltei, ele colocou em mim a pulseira de prata.

Ela existe até hoje, embora ele já tenha partido. 

Sempre que a coloco me lembro dele…

E a uso com frequência.


Texto de Zara Gerhardt na Parêntese / Matinal

segunda-feira, 5 de agosto de 2024

Pai



Descobri

um velho pedaço de papel

com sua letra


Nesses traços 

a sombra da sua mão

ainda está se mexendo


É só um velho pedaço de papel

mas nele você ainda

consegue conjugar

os verbos na primeira pessoa


Poema de Leonardo Gandolfi publicado na revista piauí de janeiro de 2024 - edição 208

Bares


Já era tarde

quando

a grande porta de metal 

baixou

mas nossos corações 

resistiram

abertos

vagando pela noite

em busca 

de outros corações e portas

prestes a fechar



Poema de Leonardo Gandolfi publicado na revista piauí de janeiro de 2024 - edição 208

domingo, 4 de agosto de 2024

200 anos de desigualdades


Os 200 anos da imigração alemã para o Brasil são uma oportunidade para refletir sobre o passado e repensar o futuro. A data da chegada dos 39 primeiros colonos a São Leopoldo (RS), berço da imigração alemã, é 25 de julho, também Dia Internacional da Mulher Negra Latino-Americana e Caribenha e Dia Nacional de Tereza de Benguela (líder quilombola).

Por ironia, a celebração da história de esperança e superação de um povo estrangeiro que fugiu de guerras e da pobreza em busca de uma vida melhor expõe as desigualdades perpetradas pelo Estado com o racismo institucional e o massacre indígena no Novo Mundo.

Nesse sentido, é muito interessante o documentário produzido pela Deutsche Welle (DW), TV pública alemã, sobre o bicentenário. O vídeo aborda a história a partir da perspectiva de uma família de imigrantes e, sem romantizar, tira o europeu do papel de herói, expondo capítulos carregados de "sonhos e traumas para lados e povos distintos".

No último país das Américas a abolir a escravização, o progresso e o desenvolvimento foram associados ao clareamento do povo. A diversidade populacional era vista como problema e o Estado decidiu atrair europeus oferecendo vantagens como terras e isenção de impostos.

Enquanto isso, os negros foram excluídos e estereotipados como seres desprovidos de saberes, e alijados de direitos. A chegada dos imigrantes resultou ainda na apropriação de terras e no massacre de povos indígenas que viviam na Região Sul. O governo de SC chegou a contratar mercenários (os "bugreiros") para dizimar a população originária, que foi reduzida em dois terços.

Não que a vida dos imigrantes alemães tenha sido fácil. E com certeza a chegada deles impulsionou nosso progresso. Mas não dá para seguir passando pano em crimes cometidos pelo Estado. A precariedade de vida de milhões de pretos, pardos e indígenas brasileiros é consequência também da política de imigração do século 19. E isso não dá mais para negar.


Texto de Ana Cristina Rosa na Folha de São Paulo.

quarta-feira, 24 de julho de 2024

Terra prometida, terra sem paz


O Parlamento de Israel rejeitou a criação de um Estado palestino na quinta-feira (18). No dia seguinte, a Corte Internacional de Justiça, em Haia, julgou que a ocupação israelense nos territórios palestinos da Cisjordânia, do Golã e de parte de Jerusalém é ilegal e deve ser encerrada.

E nada aconteceu. Nem palestinos nem israelenses comemoraram ou protestaram. Faz 47 anos que a ocupação da Cisjordânia é considerada ilegal pela Assembleia e pelo Conselho de Segurança da ONU e pelos últimos seis presidentes dos EUA. Mas Israel sempre foi (e vai) em frente: criou 144 colônias nos territórios ocupados em 1967, na Guerra dos Seis Dias, e nelas vivem hoje 500 mil colonos —e mais 220 mil em Jerusalém Oriental. Ainda sobra espaço para um Estado palestino? Não.

O primeiro-ministro, Binyamin Netanyahu, respondeu à Corte de Haia no domingo (21): "O povo de Israel não é um ocupante em sua própria terra e em sua capital eterna, Jerusalém". É a terra prometida por Deus a Abraão, a Judeia e Samaria bíblicas.

A terra prometida foi parcialmente ressuscitada em 1948, pela ONU. Prometida, mas não protegida e imune a ataques desde o primeiro dia de independência —Israel consolidou uma política de ocupação que considera essencial à sua segurança. E que, na prática, inviabiliza um Estado palestino.

A conquista do deserto do Sinai, da Cisjordânia e de Jerusalém Oriental, de Gaza e do Golã, na guerra contra o Egito, Síria e Jordânia, era para ser provisória. Eu vivia ao lado de Gaza, como voluntário, no kibutz Reim, devastado no ataque do Hamas de 7 de outubro de 2023. Arava o deserto à noite, com a escolta de um árabe druso armado, porque o farol aceso do trator poderia atrair atacantes palestinos. Era a época em que o Partido Trabalhista estava no poder, com Levi Eshkol. Foi ele quem criou a primeira colônia nos territórios conquistados, Kfar Etzion, ao sul da Cisjordânia, em setembro de 1967.

A base dos trabalhistas para a colonização foi o Plano Alon, de Yigal Alon, que chegou a ser primeiro-ministro interino. Ele previa a anexação de Jerusalém Oriental, de Gush Etzion e do Vale do Jordão, e funcionou até o governo de Yitzhak Rabin.

Muitas colônias nasceram como Nahal, ou postos militares, e depois foram entregues a civis. Isso porque, para uso militar, as terras podem ser confiscadas.

Com o primeiro-ministro Menachem Begin, em 1977, a colonização deu um salto. Os religiosos e nacionalistas o saudaram como aquele que resgataria toda a "terra prometida" — um novo "messias". Ele só devolveu o Sinai, em troca da paz com o Egito, e a colônia de Yamit, a "nascida do mar".

Acusado de criar "obstáculos à paz", com as colônias que brotavam por todos os territórios sob negociação, com status a definir, o premiê Begin nunca se intimidou. "Provisório", era a sua justificativa, sempre. Israel anexou Jerusalém Oriental e o Golã, da Síria, por leis aprovadas pelo Parlamento, e saiu em 2005 de Gaza, que agora está destruindo em represália ao massacre do Hamas, com mais de 1.500 israelenses e 38 mil palestinos mortos.

O governo atual de Netanyahu está sob pressão do acordo de coalizão feito em 1º de dezembro de 2022, com o partido de extrema direita e ultranacionalista Sionismo Religioso, para estender a soberania israelense sobre a Judeia e Samaria —ou a Cisjordânia, a "terra prometida" pelo presidente Joe Biden aos palestinos.

O ex-presidente Donald Trump transferiu a embaixada dos EUA de Tel-Aviv para Jerusalém e reconheceu a soberania de Israel sobre as colinas sírias do Golã. Lá, desde 2019, ele ganhou, em gratidão, uma comunidade batizada de Ramat Trump, ou Colina de Trump, numa altitude maior que o prédio Trump Tower, em Nova York. O ex-presidente pode ser eleito neste fim de ano, para alegria de Netanyahu, que tem um discurso previsto para as duas Casas do Congresso, em Washington, nesta quarta-feira (24).

Sem Biden e sem os democratas na Casa Branca, o projeto da Palestina pode desaparecer, no Oriente Médio sem paz.


Reprodução de texto de Moises Rabinovici na Folha de São Paulo

domingo, 7 de julho de 2024

Biografia


meu pai apostava o feijão no futebol

tinha drible ligeiro, batia forte na bola


eu apostei a vida no poema

nas promessas que ele inventava


cada um escolhe o deus 

que nos salva e condena


nunca acertamos um milhar

nenhuma pule premiada


não houve livro na lista dos mais

vendidos nada no jogo do bicho


no fim sobramos dois vagabundos

esperando explodir o fim do mundo


ele cansou, partiu primeiro, enquanto

eu vou indo, de domingo a domingo


pagando o preço do precipício que

é viver sem ter mais nada a perder



Poema de Jorge Augusto publicado na revista piauí de novembro de 2023, edição 206.

Separação entre drogas lícitas e ilícitas é linha imaginária que não leva em conta efeitos reais das substâncias


Definitivamente não sou a pessoa mais experiente do mundo quando o assunto são "entorpecentes" (leia a palavra entre aspas com voz de apresentador de programa sensacionalista, por gentileza). Não bebo álcool. Não fumo cigarros, cachimbos ou charutos de qualquer natureza. Cogumelos? Só os que podem ser colocados na pizza ou no estrogonofe. No ramo dos estados alterados de consciência, as únicas coisas que consumo são chocolate, catolicismo e romances de fantasia.

Não escrevo isso para me vangloriar. É bastante possível que alguém tenha esquecido de instalar o aplicativo da busca por sensações insólitas no meu cérebro antes de ele sair da fábrica, e pronto. Só resolvi listar de antemão todas as substâncias psicoativas que não aprecio porque sou incapaz de compreender, mesmo assim, por que tanta gente se descabela diante da tímida decisão do STF sobre o consumo de maconha, ou sobre o tema da descriminalização do consumo de drogas, de forma mais geral.

É, eu sei que estamos diante do Congresso mais conservador a ser eleito no país desde o Segundo Reinado (para não falar da população que o escolheu). Mas tentemos raciocinar juntos.

O que todas as drogas têm em comum é, conforme mencionei no primeiro parágrafo, a capacidade de produzir estados alterados de consciência por meio de seus efeitos no cérebro. É por isso que todas as culturas humanas sempre usaram substâncias desse tipo, pelo que sabemos. Acho que ninguém vai discordar disso, certo?

O próximo passo lógico é o seguinte: não existe nenhuma razão objetiva para supor que drogas de consumo legalizado (e tributado), como o álcool e o tabaco, sejam intrinsecamente "mais seguras" para consumo do que todas as demais. Não foi esse o critério que fez delas drogas "lícitas", enquanto todas as demais seriam ilícitas por natureza, por decreto divino concedido no monte Sinai ou coisa que o valha. O critério foi pura e simplesmente cultural e histórico.

É possível que o álcool, digamos, cause menos dependência, menos danos aos neurônios e menos risco de desencadear doenças mentais do que drogas proibidas por lei? Talvez, mas isso é algo a ser determinado caso a caso, por uma comparação criteriosa, e não por um tabu cultural que traça uma linha imaginária entre um tipo de droga e o outro.

Uma vez feita essa comparação, é um bocado provável que a droga "lícita" exceda, em seus efeitos nocivos, ao menos algumas substâncias hoje proibidas. Basta pensar na letalidade da mistura álcool + veículos automotivos.

A pergunta inevitável que viria depois disso é: e aí? Algum congressista teria coragem de defender a proibição completa da venda de bebidas alcoólicas em território nacional, como os EUA tentaram fazer no começo do século 20? Se a resposta for "não", o que impede que drogas de "periculosidade" similar à do álcool sejam igualmente legalizadas além de, mais uma vez, mero tabu?

Note que eu nem toquei nos dilemas sobre liberdades individuais versus custos sobre o sistema de saúde, a viabilidade de barrar venda e consumo por meio da repressão etc. –até porque tem gente muito mais qualificada para abordar essas variáveis.

Mesmo sem levar tudo isso em conta, o fato é que a legislação brasileira de hoje divide os tipos de drogas com base em pouco mais do que pensamento mágico. Se a intenção é realmente proteger a saúde pública, os direitos dos cidadãos e evitar injustiças, trata-se de uma base extremamente frágil, que precisa ser substituída pelo que realmente sabemos a respeito dos efeitos de cada substância.


Texto de Reinaldo José Lopes na Folha de São Paulo.

sábado, 6 de julho de 2024

EUA ameaçam liberdade de imprensa com perseguição a Assange


Ver Julian Assange deixar a prisão e sair do Reino Unido como um homem livre foi uma das cenas mais gratificantes que já tive a chance de presenciar. Já que Assange é um amigo, um aliado e um colega de longa data, foi difícil fazer qualquer coisa além de comemorar sua liberdade.

Assange foi finalmente libertado porque a opinião pública australiana passou a cobrar que seu governo deixasse de ser tão subserviente aos EUA e trabalhasse mais pela liberdade do fundador do WikiLeaks (Assange é cidadão australiano). O primeiro-ministro do país, Anthony Albanese, finalmente exerceu pressão —em público e em particular— sobre o governo de Joe Biden.

Assange passou os últimos cinco anos na prisão de Belmarsh, em Londres, uma penitenciária de segurança máxima tão repressiva que foi apelidada pela BBC de "Guantánamo inglesa". Ao lado dos detentos mais perigosos do país e dos considerados terroristas, Assange foi mantido o tempo todo confinado sozinho em uma cela mínima, com exceção de uma hora de banho de sol por dia.

Antes de ser mandado para Belmarsh, Assange já estava confinado havia sete anos. Em 2012, ele foi intimado pelas autoridades suecas a se submeter a um interrogatório no âmbito de uma acusação de estupro.

Defendendo sua inocência, o fundador do WikiLeaks deixou claro que estaria disposto a pegar um avião para Estocolmo para responder às acusações, desde que o governo sueco oferecesse garantias de que ele, uma vez no país, não seria entregue ao governo americano —que, se sabia, buscava prendê-lo.

Depois de a Suécia negar essa proteção, Assange solicitou e recebeu asilo político do Equador. O então presidente Rafael Correa prometeu que o fundador do WikiLeaks poderia ficar na embaixada do país em Londres enquanto permanecessem as ameaças dos EUA. Mas, em 2019, os EUA e o Reino Unido conseguiram pressionar o sucessor enfraquecido de Correa, Lenín Moreno, a retirar o asilo político concedido a Assange e permitir que a polícia de Londres ingressasse na embaixada para prendê-lo.

Os sete anos que Assange passou naquela embaixada pouco diferem de uma prisão. Quando o visitei em 2017, junto com meu marido David Miranda, ficamos chocados ao ver seu evidente declínio físico.

Seu lar na embaixada era pouco mais que um pequeno apartamento conjugado, sem nenhuma área ao ar livre. Policiais eram mantidos de plantão em frente à embaixada 24 horas por dia. A única razão pela qual existe um vídeo que documenta essa visita é porque a CIA —ilegalmente— monitorou e espionou Assange, incluindo as visitas que recebeu, durante os sete anos que ele passou lá.

Talvez o mais notável de tudo isso seja o fato de Assange nunca ter sido condenado por nenhum crime, exceto violação de liberdade condicional por não ter comparecido ao tribunal, em 2012, quando obteve asilo do Equador. Essa sentença foi de apenas 12 meses, que ele cumpriu integralmente em 2020. No entanto, os EUA e o Reino Unido conspiraram para mantê-lo preso por anos, sem condenação.

A enorme alegria —e alívio— com a libertação de Assange não pode minimizar a gravidade e o perigo representados por essa tentativa de criminalização do fundador do WikiLeaks pelos EUA. Como alertei em um artigo no Washington Post publicado quando os EUA o indiciaram pela primeira vez, a teoria usada para criminalizar Assange pode ser igualmente empregada para criminalizar a prática de jornalismo investigativo como um todo.

Isso porque seus supostos crimes —"conspirar com a fonte" para evitar que ela seja identificada e incentivá-la a obter informações— é a base do trabalho de qualquer jornalista investigativo. Não por acaso, quando o Ministério Público do Brasil tentou, em 2020, me processar criminalmente pela Vaza Jato, as teorias usadas foram exatamente as mesmas usadas pelos EUA para criminalizar Assange, como alertou o Comitê para a Proteção dos Jornalistas.

Como condição para sua libertação, Assange foi obrigado a se declarar culpado do crime de espionagem. Isso não teve efeito sobre Assange, que acabou libertado pelo mesmo acordo, mas significa que agora há o precedente de que o governo dos EUA e, presumivelmente de qualquer outro país, pode transformar qualquer jornalista em criminoso.

O governo americano exigiu essa confissão de culpa por um único motivo: embora o acordo de Assange não tenha força como precedente legal, ele sinaliza a todos os jornalistas investigativos do mundo democrático que suas reportagens também podem levá-los à prisão se seu trabalho constranger interesses poderosos.

Como essa é a atribuição mais nobre do jornalismo, para além da tragédia humana que foi manter Assange enjaulado por 12 anos, esse caso representa uma ameaça maior que nunca à liberdade de imprensa em todo o mundo.


Texto de Glenn Greenwald na Folha de São Paulo

As crises se acumulam, a direita boçal avança e a esquerda trololó tergiversa


Uma frase apócrifa, erroneamente atribuída a Lênin, pode ser aplicada aos tempos que correm: "Há décadas em que nada acontece, e há semanas em que décadas acontecem."

Macron dissolveu a Assembleia Nacional em 9 de junho para revigorar seu poder. Um mês depois, a ultradireita periga eleger o primeiro-ministro. Com ou sem sua vitória no domingo, a França está fadada a um grande tumulto.

Na última quarta-feira, Biden entrou confiante no debate eleitoral. Afinal, foram ele e os democratas que o propuseram aos republicanos. Saiu da refrega de maca e sua campanha entrou em coma.

Trump ganhou pontos preciosos nas pesquisas de opinião, aplainou a trilha para tomar o poder. Indagado duas vezes no debate, deixou evidente que não aceitará uma eventual derrota nas urnas. Como no 8 de janeiro de 2021, mobilizará seus fanáticos e tentará um golpe.

Na Casa Branca, o protofascista terá os poderes incontrastáveis que lhe foram concedidos pela Corte Suprema dias depois do haraquiri de Biden. A saída —digamos otimista— para a crise é ter as mãos trêmulas de um vovozinho senil em torno do botão que detona a hecatombe atômica.

As panes em dois pilares da ordem internacional, Washington e Paris, obliterou o que era o acontecimento central de nosso tempo, o massacre de 35 mil palestinos em Gaza.

Com o beneplácito dos grandes deste mundo, Israel mata metodicamente crianças e mulheres; deixa milhares sem teto nem comida; explode hospitais e escolas. Em nome de quê? De um apartheid mais cruel que o da África do Sul até 1994.

A chacina em Gaza, por sua vez, pôs em segundo plano a carnificina cujo desenlace definirá o destino da Europa por anos: a invasão da Ucrânia. Putin, à la Netanyahu, trata como segredo de Estado o número de suas vítimas.

Porém, estimativas independentes atestam que, entre ucranianos e russos, civis e soldados, lá morreram cerca de 500 mil até agora. É meio milhão de pessoas como você, sua família, amigos, colegas.

Por fim, não passa mês sem que cataclismas naturais se abatam em algum canto do globo. São enxurradas no Rio Grande do Sul, ondas letais de calor em Meca e Nova Déli, furacões no Caribe, incêndios no Pantanal. Impávida, a crise climática se alastra.

Não é de hoje que certas épocas imaginam estar no limiar do fim dos tempos. A própria Bíblia se encerra com os quatro cavaleiros escatológicos do apocalipse —peste, fome, guerra e morte. Em termos contemporâneos, são Covid, Gaza, Ucrânia e o risco de uma terceira guerra mundial.

A sobreposição de desgraças, até há pouco impensáveis, mostra que a experiência do tempo se acelerou. Realmente, vivemos semanas que equivalem a décadas. E as notícias vão sempre no sentido da deterioração da humanidade e da Terra. Como se chegou a isso?

Dois dados estão presentes em todas as respostas à questão: a desigualdade e a superexploração. Segundo a Oxfam, a fortuna dos cinco homens mais ricos do planeta dobrou desde 2020, ao passo que as cinco bilhões de pessoas mais pobres tiveram sua renda reduzida.

A miséria crescente provoca êxodos emigratórios —da África e do Oriente Médio para a Europa; da América Latina para a do Norte. A disputa encarniçada por empregos explica os votos no chauvinismo de Trump e do Reagrupamento Nacional, o partido da ultradireita francesa.

Como não há trabalho para todos, há jovens que vão para a bandidagem. Governos fascistizantes reforçam a polícia, defendem o armamento dos "cidadãos de bem" e discriminam os imigrantes racialmente. A direita boçal avança e a esquerda trololó tergiversa.

A desigualdade aguda se apoia num sistema econômico que, a pretexto de incitar o progresso, depreda a natureza. No Brasil, por exemplo, acha-se vital a exploração do petróleo, e que se dane a foz do rio Amazonas. No plano global, igualmente, prefere-se destruir a enfrentar a crise climática.

Que mundo surgirá dessas tensões? O historiador Cristopher Clark arrisca um prognóstico em "Revolutionary Spring", um estudo de 900 páginas da vaga revolucionária de 1848. Iniciada na Sicília, ela logo conflagrou a Europa —em semanas que equivaleram a décadas de lero-lero.

Ao comparar o hoje ao ontem, Clark, liberal de boa cepa, diz: "Se uma revolução vem vindo (e parece que estamos bem longe de uma solução não revolucionária para a ‘policrise’ que enfrentamos), ela poderá ser como a de 1848 —mal planejada, dispersa, acidentada e cheia de contradições."

Dias de ira voraz virão, quem viver verá.


Texto de Mario Sergio Conti na Folha de São Paulo