Estou deitada no tapete, acoplada ao meu celular, olhando o Instagram de uma mulher. Logicamente não é uma mulher qualquer, já que mulheres qualqueres não existem. É o perfil da Outra. Rolei esse feed até o inferno e agora sou mantida refém por uma música da Marília Mendonça no repeat. A dor de cotovelo consegue ser mais aguda do que o refrão.
Um peixe voraz se debate em minha glote, preciso libertá-lo. Ativo a caps louca e começo a digitar: P, I, R, A, N— Mas antes que meus dedos roídos possam gritar por mim, estouram meu cativeiro. É a polícia. Por um instante, achei que a dupla de policiais femininas tinha arrombado a porta para me salvar. Ledo engano. Elas mostram um mandado de busca e apreendem meu celular de imediato. Pedem para ver meus documentos, entrego minha identidade. Mas elas querem confiscar minha carteirinha de feminista. Oi? Isso existe?
Sou tomada pela revolta. Você sabe com quem está falando? Eu frequento manifestações, grupos de estudo, círculo sagrado feminino e o cacete. (Peço desculpas pelo termo falocêntrico, prossigo.) Saí de peito de fora no Carnaval. Descolo vale-night para as amigas mãe solo. Podem olhar minha prateleira: Angela Davis, Simone de Beauvoir, Heleieth Saffioti. Isso é um absurdo.
A sargenta não parece convencida. Cheira a minha mão, sente o futum de rivalidade feminina. Sou acusada de falsidade ideológica. Levo um tapa na cara. Engraçado, na porta da Damares vocês não batem. Outro tapa. Ainda escuto o zumbido no ouvido direito quando uma policial volta do escritório com um DVD do Woody Allen. Estou em maus lençóis.
Ofereço uma taça de rosé, elas não aceitam o arrego. Cadê a sororidade dessas vacas? Eu também sou vítima do patriarcado! Sim, eu amo Annie Hall, Annie Hall é uma obra-prima, eu odeio amar Annie Hall. E sim, eu amo odiar a Outra, ela é mais fascinante do que qualquer obra, é uma mulher. Não me peçam para bloqueá-la, eu prefiro pensar nela do que entulhar minha cabeça com homem.
Estendo as mãos para que me algemem de uma vez e acabem logo com isso. Abro os olhos, estou sozinha no tapete da sala. Sozinha não, pois a Outra me faz companhia.
Texto de Manuela Cantuária, na Folha de São Paulo.
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