sábado, 28 de outubro de 2017

Perguntar quem nunca será preso é forma de entender o poder no Brasil

O que há de mais cômico no Brasil destes últimos tempos é o tom.
Diante de um país no qual o ocupante da Presidência rifa direitos, facilita o uso de trabalho escravo, compra deputados e usa a máquina governamental para livrar-se de uma denúncia da procuradoria por formação de organização criminosa e obstrução de justiça, no qual um ministro do STF recebe 46 ligações de Whatsapp de um réu com o qual ele tem ligações sabidamente carnais, o cômico é ouvir o tom de quem narra tudo isto como se estivéssemos a assistir os embates políticos de uma democracia.
Deve ser algo parecido à República velha, na qual uma oligarquia inventava eleições de fachada e a imprensa descrevia aquele jogo de cena como se fosse um embate democrático.
O fato é que nunca o país mostrou de maneira tão explícita quão bem ele se acomoda a ser uma cleptocracia na qual os três poderes estão organizados para defender uma espécie de núcleo duro da espoliação nacional.
O Estado brasileiro estará disposto a usar de toda sua violência e intimidação para deixar intocada sua casta.
O caso do senhor Aécio Neves é exemplar neste sentido.
Mesmo sendo pego em gravações telefônicas expondo explicitamente manobras de obstrução de Justiça, mesmo dizendo ser necessário conseguir um atravessador que pudesse ser morto posteriormente, este senhor continua senador da República.
Ou seja, se quisermos entender como o poder funciona no Brasil, temos que nos perguntar sobre quem é intocado.
Quem, a despeito de toda cortina de fumaça, escapa sempre das amarras da Justiça. Quem, mesmo denunciado, nunca será preso.
Há várias formas de um país se degradar e o Brasil tem conhecido a mais brutal de todas, a saber, a explicitação dos mecanismos implícitos de funcionamento da democracia liberal.
A democracia liberal funciona com um duplo sistema de normas.
O primeiro é um sistema explícito de regras e normas enunciadas no ordenamento jurídico.
O segundo é um sistema implícito de práticas e violências que, a princípio, não devem vir à tona, que deve ser feito em silêncio.
Ou seja, a democracia não é apenas o império da lei. Ela é a gestão de anomias cujas dinâmicas não devem ser explicitadas.
No entanto, no Brasil atual, são tais práticas que ganham a cena sem que sua explicitação provoque maiores consequências. Isto ao menos tem uma consequências positiva, a saber, mostrar quão farsesca sempre foi nossa República.
Na melhor das hipóteses, isto pode deixar claro o tipo de tarefa política que se impõe daqui para a frente. A tarefa de ser capaz de se confrontar com a incapacidade nacional de construir uma democracia e com a necessidade de produzir o que até agora nunca existiu.
Não poderia ser diferente em um país que conheceu uma espécie de "transição democrática infinita", mas no sentido do mal infinito hegeliano.
Ou seja, uma transição que nunca terminou, que foi feita para nunca terminar.
Pois uma democracia efetiva só poderia ser construída sobre as bases de um empuxo social em direção à constituição de uma sociedade economicamente igualitária.
Mas hoje sabemos que mesmo as políticas implementadas nos últimos quinze anos não tiveram impacto significativo algum na desigualdade que destrói toda possibilidade de uma sociedade minimamente coesa.
Ao Brasil, cabe a possibilidade de continuar a farsa, brincando de eleições no interior de um sistema que funciona para blindar o núcleo duro do poder e para jogar a polícia para cima dos descontentes.
Ou aqueles que tomaram nota da degradação podem recusar as saídas autoritárias que rondam a história brasileira e procurar criar, pela primeira vez, as bases de um poder popular que possa se colocar como a força imanente e presente da República.
Em um momento no qual o resto do mundo se debate com os fins da democracia e a ascensão das estratégias populistas, o Brasil pode se colocar em um horizonte global de procura por uma experiência de emancipação social que é a grande tarefa deste início de século.


Texto de Vladimir Safatle, na Folha de São Paulo

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