quinta-feira, 27 de março de 2025

O Rio de Janeiro continua lendo


O Rio de Janeiro continua lendo. A frase, espetacular, não é minha, mas de meu confrade na Academia Brasileira de Letras, o poeta Antonio Carlos Secchin. Bem poderia ser o mote do "Rio Capital Mundial do Livro", a superprogramação organizada pela Unesco a cada ano numa cidade e que terá o Rio por sede a partir de 23 de abril. É a 25ª edição —algumas das outras foram em Madri, Montreal, Atenas, Buenos Aires— e a primeira numa cidade de língua portuguesa. A escolha é feita por um comitê internacional formado por federações de editores, livreiros, escritores e bibliotecas.

Durante um ano, até 23 de abril de 2026, o Rio produzirá incontáveis debates, cursos e lançamentos, distribuirá livros no transporte público e promoverá eventos em bibliotecas —só no centro da cidade há 20— e livrarias. Um ponto alto será a Bienal do Livro, em junho, que se espera ser a maior até hoje. Outra iniciativa importante, a qualificação de jovens para o mercado editorial. O objetivo de tudo isso é fomentar a literatura, a sustentabilidade do mercado e a leitura de livros, inclusive pelos meios eletrônicos.

O Rio foi escolhido pelo seu "patrimônio literário", de alcance histórico e nacional. Há 100 anos, por exemplo, já abrigava escritores de todos os estados e os acolhia nos suplementos literários de dezenas de jornais diários e revistas, mais de 30 editoras e outras tantas livrarias —a principal, a Leite Ribeiro, com um estoque de 300 mil volumes, fachada de 100 metros de extensão e vitrines iluminadas dominando o largo da Carioca. E nos gabinetes de leitura, salões de discussões, grêmios, cafés, confeitarias e qualquer lugar onde se pudesse discutir ideias. Não raro, poetas trocavam bengaladas por uma metáfora.

O país mudou, mas não de todo. O livro se sentirá em casa aqui e o resultado não se medirá somente por exemplares vendidos ou leitores conquistados, mas por um aprimoramento espiritual coletivo.

O Rio de Janeiro continua lendo porque é algo que nunca deixou de fazer.


Texto de Ruy Castro na Folha de São Paulo.

Os reacionários e a reforma do Imposto de Renda


Economista e um dos grandes intelectuais do século 20, Albert Hirschman (1915-2012) publicou em 1991 "The Rhetoric of Reaction", que viria a ser traduzido para o português como "A Retórica da Intransigência". Nessa joia de inteligência e erudição, em menos de 200 páginas ele identifica três argumentos típicos da oposição reacionária a propostas de reforma progressistas: as alegações de perversidade, futilidade e ameaça.

Assim, para os refratários às mudanças, uma reforma seria "perversa" por agravar o problema que pretenderia resolver; "fútil" por não levar a qualquer resultado palpável; e "ameaça", ao colocar em perigo outro objetivo, valor ou realização duramente conquistados.

Para ilustrar as teses da perversidade, futilidade e ameaça, Hirschman utilizou exemplos tirados da história, como a crítica de pensadores conservadores à Revolução Francesa de 1789; ao estabelecimento do sufrágio universal; e ao advento de políticas de bem-estar social. Mas não é difícil encontrar os argumentos da retórica reacionária em muitas das críticas negativas ao projeto de lei que trata de mudanças no Imposto de Renda, formulado pelo ministro Fernando Haddad e encaminhado ao Congresso pelo presidente Lula há uma semana.

Como se sabe, trata-se de dar isenção completa do tributo a quem ganhe menos de R$ 5.000 mensais e estabelecer descontos decrescentes para quem receba entre R$ 5.000 e R$ 7.000. Para compensar a arrecadação perdida, propôs-se um modesto e progressivo aumento da contribuição dos cerca de 140 mil cidadãos que ganham acima de R$ 50 mil mensais. Uma proposta moderada —há muito esperada e prometida— no rumo da distribuição mais equânime da renda.

Por ser o que é, incluir tantos contribuintes —calcula-se que possa beneficiar cerca de 10 milhões de pessoas— e focalizar a questão da desigualdade de renda, as objeções à proposta não miraram sobretudo a isenção. Os que a ela se opõem dão como certo que o Legislativo mudará para pior o capítulo da compensação.
Assim, o projeto foi criticado por suas alegadas consequências perversas para a já delicada situação fiscal e pela perda inevitável de receitas caso não se aprove a elevação dos impostos pagos pelos mais ricos. Perversos seriam também os resultados se dividendos vierem a ser taxados, criando riscos indesejáveis de evasão fiscal e fuga de capitais.

Se não se obtiver o equilíbrio entre isenção e novas receitas, previsto no texto do Executivo, haverá mais inflação, que corroerá os ganhos obtidos pelos que deixarão de pagar impostos. E a reforma, em suma, terá sido fútil. Por fim, a crítica mais radical à iniciativa diz entendê-la como ameaça à existência de uma economia bem ordenada, à medida que a isenção do Imposto de Renda também para aqueles pouco acima da linha da pobreza fortaleceria a ideia de que a população não precisa pagar impostos.

Os críticos não apresentam uma única alternativa para melhorar o projeto, sem prejuízo da meta de maior equidade. Como nos exemplos oferecidos por Hirschman, a defesa do indefensável status quo não é declarada; desfila como vaticínio dos desastres que a mudança progressista poderá trazer. Nada de novo sob o sol.


Reprodução de texto de Maria Hermínia Tavares na Folha de São Paulo

quarta-feira, 5 de março de 2025

Rubens Paiva continua aqui


Os oficiais que em janeiro de 1971 prenderam, espancaram e mataram Rubens Paiva podiam tudo.

Tanto podiam que empulharam o país por décadas, impingindo-lhe uma patranha segundo a qual ele havia sido resgatado por parceiros. Perderam. Nos últimos minutos de domingo, "Ainda Estou Aqui" levou o Oscar de melhor filme internacional.

Perderam para a memória de Eunice Paiva, sua viúva, para o livro escrito por seu filho Marcelo, para a arte de Walter Salles, para Fernanda Torres e a equipe do filme. Perderam para a memória dos povos, num momento em que o Brasil se uniu numa torcida semelhante à das vitórias da seleção brasileira de futebol. Podiam tudo e perderam.

Rubens Paiva estava na cerimônia do Oscar, num momento em que os Estados Unidos vivem um mau momento, mas a memória dos povos prevalece, muitas vezes com a arte. Nessa hora, vale lembrar o comportamento de dois diplomatas americanos naqueles dias: John Mowinckel e Richard Bloomfield, ambos lotados na embaixada, no Rio.

Mowinckel era expansivo e tinha um passado incrível. Em 1944, desembarcou na Normandia e, em junho, num jipe com o escritor Ernest Hemingway, entrou em Paris. Horas depois, ele libertou o hotel Crillon, e o outro tomou o bar do Ritz. No Rio, Mowinckel era figura fácil em boas festas e servia consomê gelado com uísque na sua barraca na praia de Ipanema, em frente ao Country Club.

Bloomfield, calvo e reservado, cuidava dos assuntos econômicos da embaixada.

Uma das filhas de Rubens Paiva telefonou-lhe, contando que o pai havia sido preso. Em 2005, ele recordaria sua reação: "Eu respondi que era um diplomata e não podia fazer nada. Até hoje lembro a decepção dela. Eu não podia fazer outra coisa".

Mas fez. No dia seguinte procurou o chefe da estação da CIA no Rio e contou-lhe o caso. "É tarde", ouviu.

A CIA sabia que Rubens Paiva estava morto. No dia 8 de fevereiro, quando o Exército sustentava que Rubens Paiva havia fugido, ele encontrou-se com Eunice Paiva e relatou a conversa num memorando ao embaixador William Rountree.

Três dias depois do encontro de Bloomfield com Eunice, Mowinckel escreveu a Rountree, dizendo que "algo deve ser feito para punir ao menos alguns desses responsáveis –punir por julgamento público".

Pelo lado americano, depois da eleição de Jimmy Carter, em 1976, o jogo virou.

Pelo lado brasileiro, até hoje, nada, salvo o constrangimento imposto ao general reformado José Antonio Belham.

Como major, ele comandava o DOI do Rio, onde Rubens Paiva foi assassinado. Há uma semana, militantes do Levante Popular da Juventude foram para a porta de sua casa com a palavra de ordem "Ainda Estamos Aqui."

Bloomfield e Mowinckel nada podiam fazer porque Rubens Paiva estava morto e também porque a embaixada americana tinha relações fraternais com a tigrada, valendo-se do seu braço militar.

Tão fraternais que, em dezembro de 1971, ao visitar os Estados Unidos, o presidente Emílio Médici fez um único pedido ao seu colega Richard Nixon: a promoção a general do adido militar, coronel Arthur Moura, um americano de ascendentes açorianos. Foi atendido.

Com Walter Salles empunhando o Oscar, ouve-se Guimarães Rosa: "As pessoas não morrem, ficam encantadas (...) O mundo é mágico".


Reprodução de texto de Elio Gaspari na Folha de São Paulo