domingo, 26 de janeiro de 2025

Queda de calouros indica que engenharia virou suco


Foi a repórter Isabela Moya quem avisou: em 2014 os calouros que entraram em cursos de engenharia foram 469 mil e em 2023, apenas 358 mil, uma queda de 23%. Para se ter uma ideia do que esses números significam, em 2023 a China tinha 6,7 milhões de jovens em cursos de engenharia.

Esse indicador sinaliza um país que anda para trás. Em 1950, quando o brigadeiro Casimiro Montenegro criou o Instituto Tecnológico da Aeronáutica, o Brasil andava para a frente. A China comunista andava de bicicleta e seu PIB havia encolhido a um terço do que havia sido um século antes. A China andou para trás, até que Deng Xiaoping acordou-a e deu no que deu.

Durante os anos difíceis da década de 1980, o engenheiro Odil Garcez Filho perdeu o emprego e decidiu abrir uma lanchonete na avenida Paulista. Seu diploma ficou exposto ao lado da caixa e a lanchonete se chamou "O Engenheiro que Virou Suco".

A queda no número de calouros de 2023 indica que no século 21 é a engenharia que está virando suco, e não se pode dizer que seja culpa do governo. Em 2024 Lula criou um campus avançado do ITA em Fortaleza. As aulas das primeiras turmas de 25 alunos começarão neste ano, com cursos de energias renováveis e de sistemas de computação, no campus de São José do Campos (SP).

Em 2026, o ITA começará a funcionar em Fortaleza, com laboratórios e alojamentos. Os cursos são gratuitos e os estudantes recebem casa, comida e roupa lavada.

A queda do número de calouros significa que diminuiu o interesse pela profissão. Na China, o governo resolve o problema com sua mão visível, estimulando algumas carreiras e desestimulando outras. No Brasil quem faz isso é o mercado, e faz de forma imperfeita.

A mensalidade para o curso de engenharia numa boa escola privada pode custar em torno de R$ 7.000. Para os cursos de administração de empresas ou economia os preços são menores e os salários oferecidos pelo mercado a quem acaba de deixar a faculdade são maiores. É o jogo mal jogado.

Nos Estados Unidos, empresários do Massachusetts e da Califórnia criaram dois gigantes, o MIT e o Caltech. Lá a mão invisível do mercado empurrou o país para a frente. É o jogo bem jogado. Os magnatas dos tempos dourados da segunda metade do século 19 sabiam que o país precisava de engenheiros.


Texto de Elio Gaspari na Folha de São Paulo

Musk e Reich do Silício encontraram em Trump chance de realizar sua utopia sem democracia


A expressão "Reich do Silício" foi criada pelo jornalista Corey Pein em um texto publicado no site The Baffler sobre ideias autoritárias que começavam a fazer sucesso no Vale do Silício. Em 2014, quando o artigo saiu, parecia um exagero retórico para criar um bom título.

Não é mais o caso.

Elon Musk, o homem mais rico do mundo, aproveitou a posse de Donald Trump, o homem mais poderoso do mundo, para anunciar sua adesão às ideias da extrema direita europeia dos anos 30.

Só há uma interpretação possível para a saudação de Musk, e é a óbvia. Se você discorda, repita o gesto dentro de uma Sinagoga e veja se alguém não entende do que se trata.

Mas Musk não era o único representante do Reich do Silício na posse de Trump. Como mostrou Patrícia Campos Mello em matéria publicada nesta Folha em 24 de agosto, o novo vice-presidente americano, J.D. Vance, é um entusiasta das ideias autoritárias que prosperaram entre os bilionários da tecnologia.

Vance já citou com aprovação Curtis Yarvin, que assina seus posts como Mencius Moldbug. Yarvin defende que os americanos superem sua "ditadorfobia" e aceitem o governo monárquico de um CEO. Afinal, diz ele, as empresas são mais eficientes que os governos.

Dá vergonha ter que refutar, mas vá lá: o que faz as firmas eficientes são as instituições do mercado, a competição, o vasto volume de informação transmitido pelos preços. Onde isso tudo é impossível, ou por algum motivo indesejável, o governo deve agir.

Se você colocar um CEO governando um Estado, ele não vai poder contar com o mercado para lhe dizer o que fazer; daí em diante, suas chances de sucesso serão as mesmas de qualquer político.

Mas o principal inspirador do novo vice americano é Peter Thiel, um grande investidor da indústria de tecnologia. Em 2009, Thiel escreveu um artigo para o think tank conservador Cato Institute em que declarou que não acreditava mais que a liberdade e a democracia eram compatíveis.

Era 2009, um ano depois da grande crise de 2008, da qual o mundo, e a legitimidade da democracia, ainda não se recuperou. A crise foi inteiramente causada pela falta de regulamentação do setor financeiro privado, o que gerou nos eleitores um interesse maior pela intervenção estatal na economia. Foi isso que deprimiu Thiel, que obviamente achava que a crise tinha sido causada pelo governo.

Na verdade, Thiel lamentava que as condições para o exercício da liberdade já viessem se enfraquecendo desde a década de 20. Duas coisas teriam dificultado o sucesso eleitoral de libertários como ele: o aumento do número de recipientes de programas sociais e a conquista do direito ao voto pelas mulheres.

Diante desse quadro, Thiel propunha três saídas: o ciberespaço, que ainda era terra de ninguém, a expansão para outros planetas e o seasteading, a criação de países artificiais no meio do oceano em que a utopia libertária pudesse ser implementada.

Pessoalmente, sou um grande defensor de que idiotas se mudem para plataformas de petróleo abandonadas em águas internacionais, porque isso em geral é longe de onde eu estou.

Mas Musk, Thiel e o resto do Reich do Silício encontraram em Trump uma chance de realizar em território americano sua utopia sem regras nem democracia.


Texto de Celso Rocha de Barros na Folha de São Paulo.

Técnica de congelamento do câncer na mama mostra 100% de eficácia em estudo brasileiro


Um estudo da Unifesp (Universidade Federal de São Paulo) sobre crioablação, técnica de congelamento de células cancerígenas, mostrou 100% de eficácia em pacientes com câncer de mama em estágio inicial da doença. Este é o primeiro protocolo de pesquisa na América Latina que utiliza a técnica para o tratamento de tumor mamário.

O procedimento é minimamente invasivo, sendo uma alternativa à cirurgia para remoção do tumor. Ele consiste na inserção de uma agulha fina na região afetada, por onde é aplicado nitrogênio líquido a uma temperatura de aproximadamente -140ºC. Essa aplicação forma uma esfera de gelo que destrói as células tumorais.

O procedimento é realizado em ambiente ambulatorial, com anestesia local, e permite que as pacientes retornem para casa no mesmo dia, sem necessidade de internação ou repouso prolongado.

Na primeira etapa do estudo, participaram 60 pessoas com tumores de até 2,5 cm e que tinham indicação para cirurgia. O estudo demonstrou que nas 48 pacientes com tumores de até 2 cm, a crioablação eliminou completamente o câncer. Nos outros 12 casos de tumores entre 2 e 2,5 cm, 8% dos participantes ainda apresentaram pequenos focos residuais da doença após o procedimento.

Em todos os casos, foi realizada uma cirurgia conservadora da mama após a crioablação, que consistiu na remoção do quadrante afetado e dos linfonodos axilares. A retirada de gânglios linfáticos, ou linfonodos, é o padrão no tratamento do tumor mamário, para verificar se as células cancerígenas migraram para o sistema linfático.

Contudo, segundo Nazário, a meta final da pesquisa é dispensar a necessidade de qualquer intervenção cirúrgica em futuros tratamentos com crioablação, porque o corpo gradualmente reabsorve as células destruídas pelo processo de congelamento.

A assistente de atendimento Cristina Spolador, 37, foi uma das participantes do estudo. Ela descobriu um nódulo na mama em julho de 2023, durante um ultrassom de rotina, e foi incluída no protocolo experimental.

"Saí do trabalho, fiz o procedimento e, no mesmo dia, já estava em casa. Não senti dor, apenas uma leve sensação de rigidez na região tratada", conta.

Depois da crioablação, além da cirurgia para remoção da área afetada, ela também fez algumas sessões de radioterapia para reduzir o risco de recidiva (retorno do câncer) na mama ou nas áreas próximas.

"A cirurgia foi realizada por protocolo. O exame patológico confirmou que não havia células cancerígenas nos linfonodos, indicando que o câncer não tinha se espalhado."

A aposentada Eleni Isabel Bianchi, 68, também participou do estudo. "Descobri o câncer ao apalpar o seio durante o banho. Fiz o procedimento de manhã e à noite já estava viajando, porque tinha uma viagem marcada. Foi tudo muito tranquilo", relata.

Para ela, a crioablação foi uma alternativa menos cansativa tanto no aspecto físico quanto no emocional. "A sensação é como estar em um 'mundo congelado', mas vale muito a pena", brinca.

Os pesquisadores agora se preparam para a última fase da pesquisa, que será realizada entre março de 2025 e 2027. No total, 700 pacientes serão divididas em dois grupos: metade receberá o tratamento com crioablação, enquanto as demais passarão pela cirurgia tradicional.

Nesta etapa, a inclusão será restrita a mulheres acima de 60 anos com tumores de até 2 cm, faixa que apresentou os melhores resultados na fase inicial do estudo.

"Essa escolha segue evidências de que, nesse grupo, a retirada dos linfonodos axilares não é necessária em câncer inicial. Nosso foco agora é comprovar que a crioablação é tão eficaz quanto a cirurgia em longo prazo", afirma Nazário.

A técnica já é utilizada em países como Estados Unidos, Japão, Israel e Itália, mas ainda não está disponível no SUS (Sistema Único de Saúde). Apesar de a Anvisa (Agência Nacional de Vigilância Sanitária) ter aprovado o procedimento, a crioablação para câncer de mama não foi incorporada pela ANS (Agência Nacional de Saúde Suplementar), o que impede a cobertura pelos planos de saúde.

"O alto custo das agulhas é um desafio, mas acreditamos que a popularização do método vai baratear o procedimento, tornando-o acessível a mais pacientes. Nosso objetivo é tirar de 20% a 30% das pacientes da fila do SUS", conclui Nazário.

Vale destacar que a crioablação não substitui outros tratamento do câncer de mama, como radioterapia e quimioterapia. Isso porque o tumor mamário deve ser tratado de forma sistêmica. Uma paciente pode fazer, por exemplo, o congelamento das células cancerígenas, combinado com hormonioterapia, para bloquear a produção de hormônios que estimulam o crescimento da doença.


Reportagem de Laiz Menezes para a Folha de São Paulo

Acreditem: o bracinho erguido é o de menos


A esta altura do campeonato, o bracinho erguido para o mundo todo ver (duas vezes no mesmo evento, diga-se de passagem) provavelmente é a coisa menos grave no extenso currículo do nepobaby do apartheid. Babadores de ovo negarão até a morte, é claro. Mas Elon Musk não precisa gritar "Sieg Heil!" para que uma coisa fique abundantemente clara: as ideias que ele tem esposado são o upgrade do nazismo para o século 21.

E ele não está sozinho –muito pelo contrário.

Já tive o desprazer de escrever sobre isso nesta Folha, mas, como dizia o velho Machado, certas coisas se devem incutir à força de repetição. Na ocasião, chamei esse conjunto impreciso de crenças, vagamente compartilhado por Musk e outros bilionários, como Peter Thiel, Jeff Bezos e Bryan Johnson, de "eugenia nerdola".

A epiderme do movimento passa uma impressão novidadeira. Esse pessoal fala muito em "longotermismo" –maximizar as chances de sobrevivência da espécie humana indefinidamente, inclusive em termos cósmicos, o que explica a obsessão deles com a exploração espacial tripulada.

Também estão gastando os tubos com pesquisas sobre extensão individual da vida biológica. Alguns, como Johnson, viraram até cobaias de si mesmos, adotando práticas bizarras de "restrição calórica" (no meu tempo isso se chamava "passar fome sem necessidade"), engolindo um coquetel de suplementos alimentares esquisitos e até recebendo transfusões de sangue de gente mais nova. Chamar os sujeitos de vampiros ou sanguessugas nem chega a ser piada: virou descrição factual mesmo. Tal como no caso de Drácula, a meta é a imortalidade.

Vale ressaltar que tudo isso, por ora, é pseudociência da grossa, por mais que eles se imaginem como paladinos das fronteiras do conhecimento. Ninguém sério faz a mais vaga ideia de como conferir vida eterna a um corpo humano, e colonizar outros planetas é só um pouco menos improvável.

Mas a verdadeira pseudociência de estimação de Musk e seus amiguinhos e rivais tem a ver com a história e a genômica da nossa espécie.

Se você acha estranho que um bilionário tenha 12 filhos sem ser religioso (principal motivação para a existência de famílias numerosas hoje), é porque talvez não tenha ouvido falar da razão por trás de toda essa prole: Musk e companhia acham que brancos como ele precisam ter mais filhos "do que a concorrência". Principalmente se forem brancos "de alta performance" (como ele, é claro).

Tudo isso porque esse pessoal, junto com 70% do Partido Republicano, compraram a patacoada da "Grande Substituição", a ideia de que estaria em curso uma conspiração para substituir biologicamente, por meio de imigração e miscigenação, as populações brancas do mundo.

E isso, é claro, seria acompanhado de um declínio civilizacional inevitável porque, afinal de contas, gente não branca tem QI inferior por razões genéticas. Eles adoram comparar esse cenário à queda do Império Romano.

O mais fascinante é que não há absolutamente nada de original nessa maluquice toda. Eles estão só regurgitando o lixo racista do século 19 que produziu o nazismo. E as "estrelas" originais dessas teorias eram os judeus, que não eram considerados brancos.

Daí porque faz todo o sentido que esse pessoal deteste a checagem de fatos. No mundo real, os pesadelos e sonhos deles não fazem o menor sentido.


Texto de Reinaldo José Lopes na Folha de São Paulo.

segunda-feira, 20 de janeiro de 2025

Notívagos podem voltar a dormir em paz, agora que há nome nosso na moda


É tarde. O único som vem do téc-téc-téc dos meus próprios dedos ao teclado, lutando com palavras e parafraseando Carlos Drummond de Andrade mal rompe a manhã. Ele, que também escreveu sobre nós. Seres incompreendidos que são noite e palpitam no escuro, deleitosos de lusco-fusco... Até que o vráááááá das marteladas na obra do vizinho esculhambe as remelas de nossa poética.

Deus não ajuda quem cedo madruga com cachorro latindo, interfone tocando e faxina com móvel arrastado pra lá e pra cá. Se reclamamos, somos olhados de cima a baixo em nossas camas ainda desfeitas. Julgados pela superioridade moral de iluminados que saúdam o sol, enviando figurinhas de "bom dia, grupo!" e fazendo vibrar nossos celulares com a força de um tapa em nossas caras amassadas pelo travesseiro. A eles, oferecemos a outra face: tapada por uma máscara de dormir com desenho do Snoopy morgado em sua casinha.

E que fique claro, apesar dos blecautes pesados que instalo em minhas janelas: não é sobre fanfarrões do crepúsculo, inimigos do fim e maratonistas de bar. Aprecio o respeito a todos, sem moderação. Refiro-me a garçons, músicos e padeiros. Plantonistas de emergência e funcionários de funerária, sempre às voltas com o sono eterno. Falo em nome dos quietos, que aproveitam pra ler e botar séries em dia. Ajustar planilhas e ter enxaquecas noturnas. Notívagos pragmáticos, que trabalham com gato no colo.

Hoje, eu mesma bato ponto no turno da noite e faço um programa da madrugada. Lembrando dos tempos em que a TV saía do ar após o "Corujão" e uma voz anunciava: "faremos uma pequena pausa, apenas o tempo necessário para você despertar para um novo dia, uma nova vida". Antes mesmo do Telecurso 2º Grau, todos nós embalados pela doce sensação do mundo inteiro acordar e a gente dormir – em versos não do Drummond, mas do Cazuza.

Há malefícios em tais viradões, eu sei. Pra saúde do corpo e dos relacionamentos, pois casais com fusos trocados vivem uma espécie de "Feitiço de Áquila", mal se trombando entre lençóis. No entanto, nem Romeu e Julieta teriam tido aquela noite de amor, ao som da cotovia, se tivessem ido se deitar junto com as galinhas.

Agora, pelo menos, há um termo que nos define, justifica e de certa forma perdoa: "cronotipo". Não mais "malandros", "preguiçosos" e "indolentes", viramos "indivíduos de cronotipo vespertino". Então, até que inventem outra palavra e com este texto já entregue, com licença. Zzzz. Só mais cinco minutinhos.


Reprodução de texto de Bia Braune na Folha de São Paulo

quarta-feira, 15 de janeiro de 2025

Por agora, genocídio em Gaza deixou de ser útil a Netanyahu


O jornal israelense Haaretz perguntava: "O acordo de cessar-fogo em Gaza não mudou em nove meses. Por que Netanyahu o aceita agora?"

Bem, acho que todos sabemos o porquê. O primeiro-ministro de IsraelBinyamin Netanyahu, nunca definiu exatamente o que seria uma vitória para poder manter a sua guerra e, assim, agarrar-se ao poder.

Mas ao não ter definido o que constituiria estrategicamente uma vitória, poderia também terminar a campanha militar quando lhe fosse politicamente conveniente. E esse dia chegou, lá longe, em Washington, ou chegará, no próximo dia 20, quando Donald Trump tomar posse como presidente dos Estados Unidos.

Por isso, Netanyahu abdica de grande parte dos objetivos com os quais bloqueou ao longo de todos esses meses qualquer hipótese de acordo. Não há indicações de que o Hamas virá a ser extinto ou até de que virá a abandonar o poder em Gaza. Israel não manterá indefinidamente o chamado corredor Filadélfia.

Netanyahu nem sequer poderá dizer que não negociou com terroristas: não só negociou, direta ou de forma indireta, como acabará a soltar prisioneiros que considera terroristas em troca de reféns. A contradição é tão clara que os dois líderes extremistas que participam do governo de Netanyahu, Itamar Ben Gvir e Bezalel Smotrich, gritam traição e podem pedir demissão.

A questão não é se as cessões são aceitáveis ou até inevitáveis. A grande questão é: por que apenas agora? Não se poderia ter salvado dezenas de milhares de vidas inocentes, em particular de crianças, aceitando este negócio e parando com a guerra genocida muitos meses atrás?

E a resposta, a única resposta que faz sentido diante desses fatos, é de uma tal imoralidade que é até difícil de contemplar: a matança deixou de cumprir sua função para Netanyahu.

Isso não é uma surpresa. Pelo menos para mim, não é. Quando a guerra começou, eu ainda não escrevia nesta Folha, mas na imprensa portuguesa publiquei uma coluna com o título "Por que está tudo a rebentar ao mesmo tempo em todo o lado?", na qual respondia que "a presente fase [de instabilidade e guerra] durará no mínimo até as eleições para a Casa Branca".

No caso de Netanyahu, descrevi a sua posição como um dos elementos do "eixo dos autoritários", com Orbán e Putin, a quem era útil que Trump ganhasse as eleições. Com a guerra, Biden estava na posição impossível de perder eleitorado quer apoiasse ou não Israel. Agora que Trump vai tomar posse, Netanyahu dá de presente ao amigo uma paz, para que este se possa gabar e recolher os louros. Numa próxima ocasião, voltará à guerra, na consciência de que Gaza está destruída e será mais fácil de anexar no futuro.

Mesmo não sendo uma surpresa, não deixa de ser difícil de engolir. Centenas de milhares de pessoas perderam as casas. Dezenas de milhares perderam a vida. Os reféns apodreceram durante meses em cativeiro. E tudo isto para uma contribuição de campanha paga com vida humana.

Mesmo para quem leva duas décadas escrevendo sobre o terreno ingrato das relações internacionais, é raro escrever, como agora, sob uma mistura emocional de alívio e asco.


Reprodução de texto de Rui Tavares na Folha de São Paulo

segunda-feira, 13 de janeiro de 2025

Operação Limpeza apagou rastros de massacre no Araguaia há 50 anos


Eram dois helicópteros da Aeronáutica para fazer o serviço. Entre os dias 1º e 10 de janeiro de 1975, cerca de 50 corpos de guerrilheiros foram desenterrados nas matas do Araguaia e transportados em sacos pretos de plástico nas aeronaves. O cheiro era perturbador.

Os pilotos colocavam algodão com perfume nas máscaras, para aguentar. Voavam até a serra das Andorinhas, no sul do Pará, e, ali, os agentes do Exército, à paisana, colocavam os corpos misturados a pneus e ateavam fogo.

O relato acima foi feito pelo coronel da Aeronáutica Pedro Corrêa Cabral, que pilotava um dos helicópteros, no âmbito do processo investigatório número 1.23.001.000018/2014-55, do MPF (Ministério Público Federal), acerca da ocultação de cadáveres por parte do Exército durante a Guerrilha do Araguaia.

A Guerrilha do Araguaia foi um movimento armado que aconteceu de 1967 ao fim de 1974, na região amazônica ao longo do rio Araguaia, no qual militantes do PC do B (Partido Comunista do Brasil) buscavam implantar uma revolução socialista nos moldes da Revolução Cubana de 1959.

O depoimento do coronel Pedro Cabral se refere à chamada "Operação Limpeza", levada a cabo há exatos 50 anos, que teria o objetivo de ocultar cadáveres e todo tipo de prova da ação do Exército para exterminar os guerrilheiros.

"Quando terminou a guerrilha, chegaram à conclusão que não tem mais guerrilheiros, aí alguém falou assim: se a gente for embora e deixar do jeito que tá, vai ter muito repórter, gente da imprensa que vem pra cá e vai escavar por aqui e descobrir os corpos, então vamos fazer a operação limpeza", disse Cabral ao MPF.

De acordo com o coronel, os agentes do Exército que iam nos helicópteros sabiam exatamente onde tinham enterrado os corpos na mata. "Eles falavam: pousa aqui nessa clareira, ou pousa aqui nessa estrada", contou.

"Me lembro que uma vez pousei na estrada. Aí os agentes entravam para dentro da mata. Depois de uma hora, 40 minutos, vinham eles com os pacotes, botavam no helicóptero. Vinham em saco tipo do IML, um saco plástico preto. Geralmente fazia uma apanhada e ia para a serra das Andorinhas."

A juíza Solange Salgado, titular da 1ª Vara da Justiça Federal no DF, que comandou a tomada de depoimentos de camponeses da região do Araguaia sobre a ação do Exército na guerrilha, ouviu deles que a chamada "Operação Limpeza" foi conduzida por homens vestidos à paisana, que diziam aos locais serem "familiares" que estavam recuperando os corpos de seus parentes.

Esses depoimentos fazem parte da ação que, em 2003, obrigou a União a apresentar documentos sobre o conflito e apontar a localização das sepulturas dos militantes mortos na guerrilha. Essa decisão, entretanto, jamais foi cumprida.

As ações judiciais sobre a Guerrilha do Araguaia foram arquivadas, sob o fundamento de que os atos praticados são abarcados pela Lei da Anistia, que concede perdão a crimes políticos e conexos ocorridos entre 2 de setembro de 1961 e 15 de agosto de 1979.

Em 15 de dezembro passado, o ministro Flávio Dino, relator de um recurso impetrado pelo MPF junto ao STF (Supremo Tribunal Federal), considerou que a Lei da Anistia não se aplica a esses casos, já que a suposta ação criminosa (ocultação de cadáveres) se prolonga no tempo, em atos posteriores à vigência da lei. O caso será agora analisado pelo plenário do STF.

Procurado para se manifestar sobre as acusações do MPF, fundamentadas pelo depoimento do coronel Pedro Corrêa Cabral, o Centro de Comunicação Social do Exército afirmou que "a Força não se manifesta sobre processos em curso, conduzidos por outros órgãos, procedimento que tem pautado a relação de respeito do Exército Brasileiro com as demais instituições da República".

Por outro lado, familiares de guerrilheiros do Araguaia, que jamais tiveram acesso aos corpos de seus parentes, comemoraram a decisão de Dino. "Foi um dia histórico para as famílias", disse Marta Costa, sobrinha de Helenira Resende, estudante da USP que militava no PC do B e desapareceu no Araguaia em 1972.

"Lembro-me da primeira vez que estive no Araguaia fazendo parte do grupo de familiares na buscas pelas ossadas de nossos parentes", contou Marta. "Fiquei impressionada com a imensidão da mata, com a pobreza explícita daquele lugar."

Segundo a sobrinha da guerrilheira, a ausência do corpo da tia prolonga ao longo dos anos o sofrimento da família. "O desaparecimento da tia Nira é uma marca indelével na nossa família, e essa luta será passada de geração em geração", disse.

"A sensação é a de que a angústia nunca passa, ainda hoje, 50 anos após o final da guerrilha, as famílias seguem sem saber o destino dos guerrilheiros, os arquivos do Exército não foram abertos, os responsáveis não foram punidos, as ações impetradas pelo Estado brasileiro se arrastam na Justiça."

De acordo com o historiador Luiz Antonio Dias, que desenvolve estudos sobre ditaduras e democracias, a chamada "Operação Limpeza", que buscou ocultar provas da ação do Exército na Guerrilha do Araguaia, não foi uma exclusividade dos militares brasileiros.

"A ocultação dos corpos foi muito comum tanto no Brasil quanto nas demais ditaduras do Cone Sul, inclusive com cooperação entre os governos militares", disse. "É interessante destacar que, em 2010, o Brasil foi condenado pela Corte Interamericana de Direitos Humanos, justamente por não investigar esses ‘desaparecimentos’ forçados e não identificar os corpos dos guerrilheiros no Araguaia."


Reprodução de reportagem de Fernando Granato na Folha de São Paulo.

'Dead malls' viram monumentos ao fim de uma era


Uma das experiências mais aterrorizantes da internet, ao menos para mim, é passear pelos perfis de "dead malls". Pessoas que filmam o interior de shopping centers que faliram. Lugares enormes feitos para vender que viraram ruínas. Muitos por não conseguirem competir com as pessoas comprando tudo online. Há vários perfis assim: Urbex Offlimits ou o pioneiro DeadMalls.com.

Um dead mall é um monumento à morte do terceiro lugar. Se o primeiro lugar é a nossa casa e o segundo é o trabalho, o terceiro é o conjunto de espaços privados e públicos em que encontramos pessoas com as quais não necessariamente temos vínculos: cafés, clubes, bibliotecas, parques, livrarias, igrejas, praças e assim por diante. São os espaços que formam comunidades. Shoppings sempre foram uma solução imperfeita. Quando morrem, então, viram mausoléus.

Os "dead malls" estão agora chegando também na Ásia. Após anos de exuberância econômica, os shoppings fraquejam.

Na China, há uma busca por novas atividades que possam revitalizar esses lugares que não conseguem mais viver do comércio.

Em 2022 a China tinha cerca de 6.700 shoppings. Só em 2023, foram inaugurados mais 400. Vários deles hoje lutam para não morrer (um shopping pode ser considerado em estado terminal quando menos de 40% do seu espaço é ocupado).

É nesse contexto que há uma luta enorme na Ásia para reinventar a ideia de shopping, encontrando novas ocupações. Um dos exemplos mais interessantes é o INS, complexo de 7 andares localizado em frente ao parque Fuxing em Xangai.

O espaço abraçou outro conceito e abriga 12 boates, restaurantes, arenas de esportes digitais (esports), um clube de comédia e projetos voltados para o entretenimento. O espaço cobra cerca de US$ 50 de entrada e dá acesso a todas as atividades.

Em entrevista à Radii Media, o empresário chinês Dickson Sezto, que levou as primeiras lojas da Zara e Sephora para a China, disse: "Atualmente é preciso oferecer experiências que promovam conexões sociais. Só assim é possível atrair a geração mais nova".

Em Singapura a questão se repete. Espaços como o Haw Par Villa precisaram ser reinventados. Agora abrigam não só boates, mas também terror. O lugar construiu um espaço de experiências de terror e oferece três enormes zonas imersivas permanentes dedicadas ao gênero, incluindo um enorme escape room (além de restaurantes e comidas temáticas).

Num texto recente de Ted Gioia (sempre interessante), ele usou a ideia dos "dead malls" para falar das redes sociais, que, na visão dele, estão indo por um caminho semelhante.

Como a ideia de formar comunidades falhou, a capacidade de conectar pessoas está sendo substituída pela oferta de entretenimento hipnotizante, que não tem nem origem nem procedência.

Um sintoma disso é que as redes sociais todas estão se uniformizando e ficando praticamente iguais, seja copiando o TikTok (vídeos curtos e viciantes) ou o X. Nesta semana mesmo ficamos sabendo que, tal como em Singapura, o terror será bem-vindo nesses espaços.

READER

Já era Comprar tudo somente em lojas físicas

Já é Comprar tudo online

Já vem Gamificar as compras online, tornando-as parecidas com as bets


Reprodução de texto de Ronaldo Lemos na Folha de São Paulo

quinta-feira, 9 de janeiro de 2025

Sem noção de sua importância ao votar


Na virada de 1999, vários órgãos nos EUA foram convidados a listar os americanos mais admirados, influentes ou importantes do século 20. Saíram centenas de nomes, famosos ou nem tanto, todos dignos de admiração. Mas houve unanimidades, pessoas sobre as quais não restava a menor dúvida, representantes do que de melhor o povo americano poderia produzir. Eis algumas.

O jurista Oliver Wendell Holmes (1841-1935), o advogado Clarence Darrow (1857-1938), o educador John Dewey (1859-1952), o arquiteto Frank Lloyd Wright (1867-1959), a conferencista Helen Keller (1880-1968), o presidente Franklin Roosevelt (1882-1945), o fundador do A.A., Bill W. (1895-71), o dançarino Fred Astaire (1899-1987), o inventor da vacina contra a pólio Jonas Salk (1914-95), o jazzista Louis Armstrong (1901-71), a antropóloga Margaret Mead (1901-78), o pediatra Benjamin Spock (1903-98), a atriz Bette Davis (1908-89), a ativista Rosa Parks (1913-2005), o compositor Stephen Sondheim (1930-2021), o boxeur Muhammad Ali (1942-2016). Sim, eu sei, faltou este ou aquele, favor completar.

São pessoas que nos acostumamos a amar e a identificar com os EUA, e nos fazem perguntar como um país que produziu gente dessa qualidade pode ser tão cruel em política externa, primitivo em relações raciais e dado a metralhar inocentes em escolas. Como se explica? A resposta é: talvez eles não sejam os EUA. Mas, se eles não são, quem será? Uma amiga que, em jovem, morou durante um ano com uma família do Idaho, num programa de intercâmbio, me forneceu a descrição.

Os EUA são exatamente esse homem do Idaho, 40 anos, branco, casado com mulher "do lar", quatro filhos, casa própria, três carros. Planta, compra ou vende batatas, que é o negócio da região. Sai para caçar no sábado e vai com a família à igreja aos domingos. Não lê nada, só vê esportes na TV e às vezes toma cerveja com os amigos. Admite negros ou latinos, mas só na sua lavoura. Nunca saiu do Idaho, exceto para os vizinhos Utah e Wyoming. Não tem a menor ideia de que seu voto para presidente pode afetar o equilíbrio do mundo.

Vota em Donald Trump.


Reprodução de texto de Ruy Castro na Folha de São Paulo

O que ela queria ser quando crescesse


Há 49 anos, em janeiro de 1976, a repórter de uma revista perguntou a Fernanda Torres, filha de Fernanda Montenegro e Fernando Torres: "O que você quer ser quando crescer?". A pergunta fazia sentido: Fernanda tinha 10 anos.

"As meninas da minha idade querem trabalhar na televisão, porque acham bonito. Eu não", ela respondeu. "Eu gosto mesmo é de teatro, e sei muito bem como é. Assisto sempre aos ensaios da mamãe, fico um tempão vendo todo mundo decorando os papéis. E nunca me chateio. Também faço teatrinho no colégio, nas aulas de criatividade. Mas não gosto de teatro infantil, por isso só vou ser atriz quando crescer."

A repórter era Christina Lyra e a revista era a Domingo, a primeira semanal colorida em formato revista a circular dentro de um jornal no Brasil, no caso o Jornal do Brasil. A pergunta surgira na primeira reunião de criação da revista, que começaria a circular dali a três meses. Dessa reunião, quase uns sobre os outros na minúscula salinha que nos fora destinada pelo jornal, faziam parte o diretor Isaac Piltcher, os redatores Marcos Santarrita e Sergio Ryff, as repórteres Cleusa Maria e Christina Lyra e o editor-executivo, por acaso eu.

Um de nós teve a ideia de fazer aquela pergunta a algumas crianças, ideia certamente roubada da americana Esquire, nossa secreta inspiração. Tudo bem, mas quais? Horas depois, decidimos pelos filhos ou netos de gente conhecida —Zagallo, Marcia Kubitschek, Chico Anysio, o senador Gustavo Capanema e os queridos Fernandos. O pulo do gato era fazer a mesma pergunta a um menino de comunidade, filho de um trabalhador anônimo. Christina foi a repórter destacada para conversar com as crianças. A matéria saiu no nº 1 da Domingo, com data de 11 de abril.

Não sei se os outros fizeram jus às suas aspirações. Fernanda Torres, grande vencedora do Globo de Ouro, sim. E com o detalhe de um espantoso requinte. À pergunta de Christina sobre se gostava também de cinema, disse "Claro!" e acrescentou: "Sabe, eu adoro filme de mistério e espionagem." Bem, quer mais mistério e espionagem do que em "Ainda Estou Aqui"?


Reprodução de texto de Ruy Castro na Folha de São Paulo

Se liga, Brasil: nossa esperança é a Nanda


Globo de Ouro é uma boa ocasião para afirmar o que vinha se insinuando há anos à consciência nacional, mas esbarrava no transe autodestrutivo que acometeu o país na última década: Fernanda Torres é a maior artista brasileira da sua geração.

Coube um momento histórico difícil a essa fornada de brasileiros nascidos nos anos 1960, que é também a minha – chamada de Geração Coca-Cola por Renato Russo, um de seus membros mais ilustres.

Fazíamos música, mas nunca seríamos um Chico ou um Caetano. Montávamos peças, mas jamais chegaríamos à grandeza de Fernanda Montenegro. Escrevíamos livros, mas nem sinal de uma nova Clarice. Dirigíamos filmes, mas onde estava a fúria santa de Glauber?

Cevada em ideias meio utópicas de país que perdiam vitalidade à medida que crescíamos para encarar o desafio realista da redemocratização, nossa geração desencantada foi uma ponte entre duas margens distantes.

De um lado ficava o Brasil que amava se ver como um país de cultura exuberante e generosa, portadora da promessa de uma nova sociabilidade, resultado de todas as misturas; do outro, uma terra cortada por rachaduras fundas, consciente de ser uma das mais desiguais do mundo, fértil em ódio e intolerância.

Se aquele país a pariu em berço esplêndido, no seio da realeza dos bambas, cabe a este, o crispado, testemunhar o apogeu da Nanda – como não só os amigos a chamam, com a intimidade de quem a viu perder bochechas desde a adolescente "Inocência", de 1983.

Agora este país ideologicamente partido ao meio vê Fernanda Torres apontar, com sua descomunal Eunice Paiva, nada menos que um caminho de reconciliação anímica.

Se soubermos aproveitá-lo, continuaremos a divergir politicamente, claro, mas um lado não mais exaltará a tortura como política de Estado e os torturadores, gente desprezível, como heróis.

Trata-se do mesmo lado que vive louvando a família e que agora se depara com o mal demoníaco feito por sua amada ditadura à família daquela mulher – que, coisa espantosa, não se quebra. Pelo contrário, chega a queimar a tela com uma grandeza que há muito não se via na arte brasileira.

Que isso aconteça quando a tentativa de golpe de Jair Bolsonaro faz dois anos, com Braga Netto na cadeia e a investigação ainda rolando, é um milagre. À beira do novo governo Trump, tem jeito de farol para a humanidade.

Eis no que dá quando a gente deixa a extrema direita se criar, diz Nanda. Em termos culturais, os milhões de brasileiros que se comoveram com "Ainda estou aqui" são um fenômeno de escala geológica.

Vale lembrar que antes do mirante Eunice Paiva a estrada passou por uma também inédita Palma de Ouro em Cannes aos 20 anos, uma Alex de "Terra Estrangeira", uma Vani, uma Fátima e dois romances de primeira – "Fim" e "A Glória e seu Cortejo de Horrores".

Sem falar na montanha de crônicas, nos memes perfeitos e no senso de humor mordaz, inteligentíssimo – tragicômico, palavra que ela acredita definir nosso país –, no qual se detecta o DNA artístico de Millôr Fernandes e Nelson Rodrigues, presentes também em sua biografia.

Papo reto, Brasil. A Nanda é nossa melhor esperança.


Reprodução de texto de Sérgio Rodrigues na Folha de São Paulo

quarta-feira, 8 de janeiro de 2025

O encantamento de Rubens Paiva


Fernanda Torres, vivendo a serenidade de Eunice Paiva no filme "Ainda Estou Aqui", de Walter Salles, levou o Globo de Ouro.

Guimarães Rosa avisou: "As pessoas não morrem, ficam encantadas." O encantamento de Rubens Paiva continua, ao lado de Eunice, morta em 2018.

Em janeiro de 1971, ela era apenas a mulher de um inimigo da ditadura desaparecido depois de ter sido levado para o DOI do 1º Exército. Como Dilma Alves, era mais uma viúva. Anos depois, Elzita Santa Cruz seria mais uma mãe procurando o filho. Buscavam os paradeiros de Mário Alves e de Fernando Santa Cruz.

Para os poderosos da época, esses familiares eram estorvos. Os comandantes militares sabiam que Rubens Paiva tinha morrido depois de uma sessão de torturas. Sustentavam e, oficialmente, continuam sustentando, que ele havia sido resgatado num episódio implausível.

Rubens Paiva encantou-se. Primeiro com o livro de seu filho Marcelo "Feliz Ano Velho", que teve centenas de milhares de leitores. Depois, com "Ainda estou aqui", a partir do qual Walter Salles decidiu fazer o filme. Assim, o encantamento abraçou a memória de Eunice.

O filme foi visto por mais de 3 milhões de pessoas e seu roteiro foi premiado em Veneza. Aquela mulher, mãe de cinco filhos, queria o reconhecimento de que o marido morrera.

Com o tempo, a mentira dos comandantes militares foi desmascarada por diversos oficiais do próprio Exército. Quando o major José Nogueira Belham, comandante do DOI do Rio, assinou o recibo dos objetos daquele preso, jamais imaginou seu tamanho.

Fernanda Torres recebeu o Globo de Ouro de preto, sem adereços. A alegria do país com seu prêmio envolveu num luto tardio o encantamento de Rubens Paiva. Aquele homem enorme, jovial, magnificamente personificado por Selton Mello, havia sido cassado em 1964 pelo vigor com que combatia a corrupção eleitoral numa CPI. A cultura cinematográfica devolveu-o ao país, expondo um drama que a ditadura abafava.

Rubens Paiva e todos os desaparecidos continuam aqui.

Atrás da história da família de cada desaparecido nos porões da ditadura, há um drama parecido com o de Rubens Paiva. Ele foi assassinado ao cabo de uma operação conduzida pelo Centro de Informações do Exército, na qual estava o oficial Freddie Perdigão Pereira. (No dia 31 de março de 1964, Perdigão comandava os tanques que protegiam o palácio Laranjeiras, onde estava o presidente João Goulart.)

No combate à guerrilha do Araguaia (1972-1974), mataram até mesmo os militantes do Partido Comunista do Brasil que se entregaram, atendendo às convocações do Exército.

Sumiram todos. Estão encantados, como Telma Regina Corrêa, de 27 anos. Ela havia estudado geografia na Universidade Federal Fluminense e, em 1971, foi para o Araguaia. Com Telma, seguiram o marido e uma cunhada.

No segundo semestre de 1974, a guerrilha estava destroçada, o marido e a cunhada haviam sido mortos. Um lavrador viu-a depauperada, debaixo de uma árvore, e chamou os militares. Telma tinha um diário, onde escreveu: "estou nas últimas" e "não aguento mais".

Foi carregada para a base de Xambioá, onde a alimentaram, ouviram e mataram. Essa história está no livro "Borboletas e Lobisomens", de Hugo Studart.


Reprodução de texto de Elio Gaspari na Folha de São Paulo

terça-feira, 7 de janeiro de 2025

Fernanda Torres, com Globo de Ouro, é gigante de país capaz de orgulho


Num vídeo que circula nas redes sociais, Fernanda Torres fala sobre o reconhecimento internacional de "Ainda Estou Aqui" e de seu próprio trabalho. O trecho é retirado de uma entrevista concedida ao jornalista Rodrigo Ortega, do UOL, na qual ela comenta a riqueza da cultura do Brasil e a nossa singularidade como espécie de "ilha continental" separada do mundo pelo idioma.

Paralelamente a essa configuração, ou melhor, por causa dela, nas palavras da atriz "a gente consome a nossa própria cultura, a gente tem total interesse por nós mesmos, porque nós somos uma potência de 200 milhões de pessoas, nós somos um país complexo, temos as próprias questões".

Nessa relação intrincada com seu país e com o mundo, os brasileiros letrados conhecem muito mais a cultura europeia ou americana do que os europeus e os americanos conhecem a brasileira. Essa assimetria nos dá uma certa segurança sobre a relevância de nomes ignorados internacionalmente, como foi o caso, até pouco tempo, de Machado de Assis e Clarice Lispector, ou como continua sendo com Nelson Rodrigues.

"Como é que posso falar com alguém que não sabe quem é Nelson Rodrigues, que não sabe quem é Candeia?", pergunta Torres. Se por um lado existe o complexo de vira-lata, por outro lado o Brasil "tem pena de o mundo não saber o que a gente sabe".

As observações me lembraram prontamente de uma entrevista que fiz em 1990, em Milão, com o professor e escritor Umberto Eco. Foi um encontro especial, que contou com a participação dos poetas e irmãos Augusto de Campos e Haroldo de Campos. Eco, um teórico da semiologia, disse a dada altura da conversa que o Brasil o espantara por ele ter conhecido aqui estudiosos sérios de Charles Sanders Peirce, filósofo, matemático e linguista americano.

"Me parecia que só os alemães se interessavam por Peirce", disse o autor de "Obra Aberta" e "O Nome da Rosa", que nos visitou pela primeira vez em 1966.

Aproveitando a deixa, observei que o Brasil tinha esse tipo de coisa, essas singularidades, embora fosse um país periférico, que se situava fora do centro do sistema mundial.

"Mas o Brasil é um centro por sua própria conta", retrucou ele. "Esse é o drama do Brasil: não é o de ser apenas um país fora do centro, porque há muitos nessa situação. Mas o de ser um país que tem um centro por sua própria conta."

As coincidências entre as palavras de Torres e Umberto Eco são evidentes, o que nos leva ao fato de que as questões sobre identidade nacional problematizadas pela atriz vêm de longa data e atravessaram nosso debate do século 20, tempo de "explicadores do Brasil" e de experiências de construção de um país que só se realizou integralmente como projeto civilizatório no plano simbólico da cultura.

Essa é uma questão já levantada por muitos, e de maneira enfática por Caetano Veloso, profeta voluntarista das possibilidades dessa ilha continental lusófona. Conhece-se sua visão de que a música popular teria sido um lugar privilegiado dessa elaboração —e a bossa nova o seu auge.

No vídeo, Torres se refere ao sentimento de "um orgulho nacional bacana", que mais uma vez se manifesta no plano da cultura —terreno do qual o futebol já fez parte de maneira mais criativa. Não por acaso, foram muitas as comparações feitas entre a torcida pelo Globo de Ouro e o clima que vemos na Copa do Mundo.

Tudo isso pode soar um tanto antigo, mas Torres tem berço, cultura, obra relevante (inclusive literária) e idade para essa conversa. Ocorre que passamos por uma fratura que alterou essa perspectiva. Ou por múltiplas fraturas, não apenas nacionais, que nos confrontam com a crise das promessas da democracia liberal e das utopias socialistas, a desigualdade, a tribalização do discurso progressista e a emergência do populismo de extrema direita.

A imagem da ilha continental continua a fazer sentido, embora sempre de alguma forma tenhamos marcado presença no mundo. A premiação de Torres faz dela uma gigante da cultura deste Brasil que ela tanto ama, e é um sinal de que talvez possamos colar alguns de nossos cacos.

Num paralelismo óbvio com o título do filme de Walter Salles (e do livro de Marcelo Rubens Paiva), o sucesso parece evidência de que aquele Brasil sonhado por muitos ainda está aqui. Assim como os velhos inimigos, os obscurantistas do fascismo cultural e político redivivo, que preferem o autoritarismo e um certo tipo de isolamento, este sim sufocante.


Reprodução de texto de Marcos Augusto Gonçalves na Folha de São Paulo.