quarta-feira, 30 de outubro de 2024

Pela última vez


O poeta Antonio Cicero foi à Academia Brasileira de Letras, da qual era membro, no dia 10 último. Naquela quinta-feira, subiu ao segundo andar do Petit Trianon, participou do chá informal que antecede a reunião e, quando esta se iniciou, sentou-se em seu lugar de sempre, entre mim e o historiador Arno Wehling. Como fazia havia algum tempo, assistiu em silêncio aos trabalhos. Ao contemplar as paredes centenárias, os funcionários da Academia e os confrades, por quem era muito estimado, sabia que aquela seria a última vez. Nós é que não imaginávamos que nunca mais o veríamos.

No dia 18, com seu companheiro há 40 anos, o figurinista Marcelo Pies, Cicero saiu de seu prédio na rua David Campista, no Humaitá. Tomaram um táxi para o Galeão, desembarcaram em Paris de manhã e Cicero foi a seus museus e livrarias favoritos na cidade que era também sua. Dois dias depois, partiram para Zurique, na Suíça, onde tinha um encontro com os médicos que o acompanhariam quando se autoadministrasse um remédio indutor do sono que, em meia hora, faria seu coração parar. Era a "morte assistida", o procedimento a que se decidira havia um ano, quando os exames determinaram que sofria da doença de Alzheimer.

Cicero não queria que o Alzheimer cumprisse seu terrível ciclo de perda da memória e, de repente, da razão. Chegara àquele estado fronteiriço, em que ainda se consegue perceber a proximidade da demência —e, por percebê-la a tempo, optou por derrotá-la, antecipando-se a ela. Em um mês ou dois, talvez essa percepção já não lhe fosse possível.

Em casa, antes de partir, qual terá sido o último livro que leu? E o último poema? Ao contemplar seus objetos, suas estantes, seu gato Homero, sabia que era uma despedida. O que terá sentido ao fechar a porta do apartamento, descer à rua e entrar naquele táxi que, no fundo, era um táxi para Zurique? E, depois, como ele acreditava, para o lugar nenhum.

Não sei. Só sei que seu gesto calou fundo entre nós, seus colegas da Academia, e nos fez admirá-lo ainda mais, agora por sua coerência. Afinal, um dia ele escrevera: "Eis o que torna esta vida sagrada:/ Ela é tudo, e o resto, nada."


Texto de Ruy Castro na Folha de São Paulo

terça-feira, 22 de outubro de 2024

Sua majestade, o eleitor: ou por que votamos em tiranos?


Véspera de eleição e a pergunta que insiste é: por que galinha vota em raposa? Queremos entender por que mulheres votam em agressores e por que contribuintes entregam seus impostos a corruptos. Pergunta de um milhão de dólares que sociólogos, historiadores e psicólogos vêm tentando responder com mais afinco a partir da Primeira Guerra Mundial, momento no qual ficou claro que o ideal iluminista tinha saído pela culatra. Quanto mais o Ocidente se arvorava como a parte civilizada da humanidade, quanto mais apostava no controle dos impulsos pela força da razão, mais se afogava em sangue fratricida. O plano que supõe que a vontade dominaria nosso desejo ingovernável carece de ser combinado com os russos.

A contribuição psicanalítica nessa contenda é centenária, posto que o surgimento da psicanálise é contemporâneo da derrocada civilizatória ocidental. Embora nossa civilização, imperialista, escravocrata e feminicida, já fosse baseada no horror, a ficha só começa a cair quando a brutalidade é encenada dentro do velho continente. A imagem associada aos "selvagens" do sul global, que servia de antítese para os ideais racionalistas, empalidece diante da carnificina da Primeira Guerra Mundial.

Mas, afinal, por que seguimos líderes que nos prejudicam e nos fazem rumar em direção ao pior? Puxarei apenas um fio da meada dessa discussão, cuja complexidade não será contemplada aqui. Para Freud, a criança pequena vive a experiência primordial de se considerar "sua majestade, o bebê". Isso significa que há um momento no qual ela acredita ser o centro do universo. Estamos falando de como a fantasia onipotente serve para mascarar o desamparo inicial, com o qual a criança ainda não pode lidar. Mas se engana quem pensa que a constituição psíquica é feita de fases do desenvolvimento a serem alcançadas e superadas, como numa lista de supermercado à qual damos "check". Trata-se de um processo contínuo de reconhecimento de que somos seres desamparados, finitos e que, vez por outra, mesmo adultos, apelamos à miragem de um salvador, aquele que não estaria inteiramente constrangido pelos limites da realidade.

Políticos autoritários, por outro lado, ao encarnarem aspirações megalomaníacas, fazem valer na forma de privilégios ou do franco abuso de poder o lugar da majestade, que todos fantasiamos um dia ter vivido. E são esses que nos servem de modelo, acenando com a miragem de um trono sempre pronto a ser ocupado por um de nós. Os ideais igualitários, coletivistas, comunitários ferem de morte nossas aspirações delirantes de um dia reinarmos absolutos sobre os demais. Manter alguém ocupando o lugar de exceção é manter o próprio lugar de exceção como virtualmente acessível a nós.

A resistência do cidadão comum à taxação de grandes fortunas, por exemplo, que atingiria uma parcela ínfima da população, vai além da ignorância. Ela é tão irracional quanto as fantasias inconscientes que nos impulsionam, aquelas que os iluministas acreditavam poder controlar. As redes sociais manipulam e potencializam nossa megalomania infantil, criando efeitos coletivos até então inéditos. Domingo próximo é dia de eleição, o que não deixa de ser um tipo de psicodiagnóstico social.



Texto de Vera Iaconelli na Folha de São Paulo.

De Gaza ao Líbano: um mundo de impunidade


Uma perturbadora erosão gradual e constante das normas universais do direito internacional tem ocorrido nas últimas décadas. Diversos conflitos armados recentes têm desintegrado completamente os sistemas de proteção da população civil.

No mais grave e longevo desses conflitos, o Estado de Israel, à guisa de se defender do Hamas, em um ano destruiu na Faixa de Gaza todas as escolas, hospitais, universidades, mesquitas, igrejas, arquivos, museus. Cerca de 1,9 milhão de habitantes foram deslocados de suas casas. Quase 2% da população foi morta pelos bombardeios israelenses —60% dessas 42 mil vítimas são crianças, mulheres e idosos a partir de 60 anos.

No final do mês de setembro, a escalada de ataques, iniciada em 8 de outubro de 2023 entre Israel e o grupo não estatal armado libanês Hezbollah, se agravou. Em 27 de setembro último, sem aviso prévio, Israel lançou mais de 80 bombas de 2.000 libras num bairro no sul de Beirute, destruindo seis prédios de apartamentos e resultando na morte do secretário-geral do Hezbollah, Hassan Nasrallah. Seguiram-se 1.700 bombardeios no Líbano, inclusive, recentemente, no centro de Beirute. No total, 1,2 milhão de pessoas foram deslocadas, 2.083 mortas e 10 mil feridas desde outubro passado, a maioria nas últimas três semanas. Israel atacou soldados da Força Interina das Nações Unidas no Líbano (Unifil) sob protestos de 40 países, inclusive do Brasil.

Tudo antes da morte do líder do Hezbollah, considerada pelos EUA como "medida de justiça", parece ultrapassado. Mas, para as vítimas, o passado recente continua sendo o presente. Como foram as explosões em 17 e 18 de setembro no Líbano, e também na Síria, em pagers e walkie-talkies, atribuídas a Israel —visando o Hezbollah, mas que atingiram 3.500 libaneses, com 42 mortes. Perderam ambos os olhos 300 pessoas e, 500, uma das vistas. Houve registros de lesões graves na cintura e no rosto das vítimas, além de mãos amputadas.

Os ataques, a quem estava de posse dos dispositivos visados, violaram o direito internacional dos direitos humanos e humanitário, avaliou o alto-comissário de direitos humanos da ONU, Volker Turk. Apesar disso, as potências ocidentais que apoiam Israel não condenaram esses ataques. As reações da mídia internacional foram de um fascínio indecente, com o feito considerado "inovador" e "audacioso".

Era de se esperar que os ataques de Israel contra o Líbano gerassem protestos aqui, visto o Brasil ter a maior comunidade de libaneses e descendentes fora do país do Oriente Médio —entre 7 e 10 milhões de pessoas.

Ledo engano. Diante desses horrores, as entidades da sociedade civil brasileira não se manifestaram. Caladas durante um ano quanto ao genocídio em curso em Gaza —cuja plausibilidade foi constatada pela Corte Internacional de Justiça—, guardam um obsequioso silêncio sobre a desesperadora situação no Líbano.

Mas uma vez nos salva desse constrangimento internacional o governo brasileiro, que condenou com veemência os ataques aos pagers e denunciou as operações militares de Israel no sul do Líbano como violação ao direito internacional, à Carta da ONU e a resoluções do Conselho de Segurança.

Acontecimentos como os ocorridos em Gaza, no Líbano e em diferentes partes do mundo solapam a aplicabilidade universal de normas e mecanismos internacionais decisivos para a proteção das populações civis.

Urge que a sociedade civil brasileira se dê conta, como há dias disse António Guterres, secretário-geral da ONU, do "mundo de impunidade" que ameaça os fundamentos da lei internacional.


Reprodução de texto de Paulo Sérgio Pinheiro publicado na Folha de São Paulo

segunda-feira, 7 de outubro de 2024

O dom das lágrimas é uma reação espontânea diante da visão da graça


No final do romance "Diário de um Pároco de Província", de Georges Bernanos, da editora É Realizações, o personagem narrador, protagonista, um padre, no fim do seu suplício, diz, de forma aliviada: "Tudo é graça". Deus age no mundo através da graça.

Conceito de alta credencial na teologia cristã, objeto de polêmicas densas, envolvendo grandes figuras como Santo Agostinho, Pelágio (séculos 4º e 5º), o jesuíta Luís de Molina (século 16) e o filósofo Blaise Pascal (século 17), a graça pode ser compreendida como algo à disposição de todos, como no entendimento de que a criação é pura graça, ou, ao contrário, pode ser compreendida como algo restrito a alguns pouquíssimos eleitos que têm o dom sagrado de percebê-la à sua volta —incluindo aqueles que conseguem ver que a criação é pura graça.

A fala do protagonista do romance aqui citado pressupõe que tudo que existe é graça, mas, nem por isso, todo mundo —ele mesmo, há quem argumente, só percebe isso claramente no leito de morte— enxergaria a graça no mundo. Essa forma de compreensão é típica dos estudos de mística e espiritualidade. Aqui a percepção é rara e restrita.

Há algo de importante a acrescentar, antes de avançarmos numa das formas reconhecidas pela literatura especializada no assunto, e por pessoas que, aparentemente, apresentam um "sintoma" específico de quem foi tocado por esse dom da graça. Afinal, qual seria esse "sintoma de Deus"?

Seja para Santo Agostinho, seja para Pascal, o dom de ver a graça ou recebê-la, simplesmente, não implica mérito por parte de quem recebe o dom —questão que levanta fúria para muitos teólogos até hoje. Esse traço constitui um elemento surpresa para o "eleito". Essa surpresa significa que a pessoa que recebe o dom pode nem ser religiosa ou nem compreender de cara o que se passa com ela.

Nesse sentido, o teólogo jesuíta suíço Hans Urs von Balthasar (1905-1988), no seu livro dedicado às santas Teresa de Lisieux e Elisabeth de Dijon, "Schwestern im Geist", ou irmãs no espírito, descrevendo o que ele chama na obra de "teologia existencial", chama a atenção para uma fenomenologia da graça em que, num dos casos de sua manifestação na santidade, ela o faz de forma inesperada, um psicólogo diria "invasiva" —ele não diz isso—, o que leva o santo a ter de se ver com o fato de que a graça habitará sua vida e sua alma para sempre, "sem ter sido convidada".

Esse caráter da manifestação "não convidada" de Deus, aparece também na obra do filósofo judeu Abraham Joshua Heschel (1907-1972), quando ele diz que "Deus o persegue pelas ruas", até pelos cafés, como uma tempestade que de repente cai sobre ele e que, sob essa ação, ele parece adentrar um "antigo santuário" que pede silêncio absoluto.

O português é um idioma feliz para entender um traço definidor da graça: a graça é de graça —redundância necessária. A rigor, tudo o que Deus faz é de graça, na medida em que ele o faz sem qualquer condicionamento prévio: não faz porque precisa fazê-lo.

Não criou o homem e a mulher porque ele precisava de companhia na sua vida "vazia". Esse caráter não motivado por qualquer necessidade nas ações de Deus se constitui num dos grandes mistérios para quem busca entender a "personalidade" de Deus e suas "intenções" ao agir da forma que age. Deus é reconhecidamente imprevisível nas narrativas bíblicas e isso incomoda muita gente.

E qual é esse "sintoma de Deus" lembrado aqui? "Bem aventurados os que choram, porque serão consolados." Eis um fundamento bíblico do "dom das lágrimas" —"gratia lacrymarum" em latim medieval. Uma reação fisiológica espontânea e incontrolável em que a pessoa que possui esse dom chora copiosamente quando enxerga a graça no mundo, em meio a sua desgraça.

Não se trata de tristeza nem propriamente alegria, mas, sim, a percepção da beleza de Deus e sua doçura no mundo, percepção essa rara e para poucos. Essa beleza infinita dispara na pessoa que recebeu esse dom das lágrimas, contra sua vontade e sem propriamente entender o porquê, o choro sagrado.

Há uma vasta literatura sobre o tema. Destaco para os leitores de francês um dos melhores, "Le Don des Larmes au Moyen Âge", ou o dom das lágrimas na Idade Média, escrito pela historiadora Piroska Nagy.

As lágrimas podem vir diante do comportamento de uma pessoa que demonstra rara generosidade, diante de um cenário sublime da natureza, diante do silêncio de um "antigo santuário", como diz Heschel, enfim, diante de uma pessoa que não joga o jogo do mundo. Os tocados por esse "incômodo" dom, hoje, normalmente, aprendem a dissimulá-lo ao longo da sua vida.


Texto de Luiz Felipe Pondé na Folha de São Paulo