Ao chegar do campo no fim do dia, em Diamantina, Minas Gerais, fui recebida pelo dono da pensão apreensivo com um recado que recebera para mim. Não sei qual a combinação de meios de comunicação minha mãe usou, certamente incluiu tambores e sinais de fumaça, para me encontrar nas entranhas do Brasil no início dos anos 80. O recado dizia que eu deveria ligar para ela, em Porto Alegre.
Depois de longa espera na central telefônica local, numa péssima ligação cheia de ruídos e interferências, consegui compreender que meu pai tinha tido um AVC, estava hospitalizado e com o lado direito do corpo paralisado. Não corria risco de vida, mas minha presença em Porto Alegre era necessária.
Minha mãe sempre ficava sem ação perante as emergências médicas da família. Quando a minha avó ainda estava por aqui, era ela quem providenciava tudo, desde os primeiros socorros até o encaminhamento para a emergência de algum hospital. Na falta da minha avó, e, mesmo longe, eu passei a ser convocada para gerenciar este tipo de problema.
Certa de que levaria mais de 24 horas para chegar, na manhã seguinte consegui que um carro da empresa, com motorista, me levasse até Belo Horizonte. De lá segui até o Rio de Janeiro, onde eu estava lotada na época. No Rio, troquei as roupas de campo por agasalhos de inverno, e segui para Porto Alegre.
Sempre tive a certeza que nada aconteceria de mal com meu pai. Afinal de contas ele ainda era para mim aquela fortaleza indestrutível, na qual sempre me apoiei nos tempos difíceis, que me estimulou a perseguir os meus sonhos, segurou a família da minha mãe quando decidi estudar geologia e que me deu uma Beretta 7.35 de presente de formatura, para defesa pessoal. Era meu esteio e exemplo de vida. Aquele homenzarrão de quase dois metros de altura tinha que ser no mínimo imortal, mesmo aos seus sessenta e poucos anos, pensava eu.
Me lembrando da sua voz tonitruante e das suas gargalhadas, enquanto dançava sozinho na sala, para desespero da minha mãe, preocupada com o que os vizinhos diriam, viajei tranquila, certa que ele se recuperaria logo.
Não estava preparada para vê-lo no hospital com o lado direito do corpo paralisado, falando e enxergando mal. Ele precisava de auxílio até para se alimentar, mas minimizava o seu estado na minha frente e eu fazia o mesmo para ele. Brincávamos de faz de conta, enquanto aprendíamos a lidar com a nova situação. O choque me fez ver que era a minha vez de estimulá-lo e incentivar a fazer os exercícios de fisioterapia, assegurando a ele que daquilo dependia a sua recuperação – embora eu, por desconhecimento, não acreditasse muito.
As posições tinham se invertido, meu pai era agora um ser frágil e dependente. Meu apoio moral passou a ser fundamental.
Fiquei na casa dos meus pais por cerca de dez dias, acompanhando meu pai no hospital e tratando de assuntos legais – ele não podia mais assinar cheques.
Nesse período pude verificar seu progresso no domínio dos movimentos do braço e perna direitos, devido à fisioterapia diária. Passei a incentivá-lo, assim como ele fez comigo durante toda a vida. Consultada, a fisioterapeuta dizia que a motricidade fina seria recobrada com brinquedos de armar, destes que se compram para crianças de 5 a 7 anos.
Antes de viajar comprei diversos esqueletos de dinossauros para montar. Inicialmente meu pai dizia que eram coisas de criança e que eu o estava infantilizando. Sem falar nada, montei o primeiro na sua frente. Desmontei e o deixei lá.
Saindo para voltar para o Rio, vesti uma pulseira de prata que eu sempre usava. Na sua frente, comentei que o fecho era difícil de trancar e que, quando eu voltasse para a próxima visita eu queria que ele a fechasse no meu pulso. Ele riu e prometeu que faria.
Escondida dele, minha mãe contava que a montagem dos esqueletos de dinossauro tinha se tornado o seu passatempo preferido, atividade cujo progresso era aferido por ele por meio de um cronômetro.
De longe, passei a acompanhar o seu progresso. Recuperou completamente os movimentos e, três meses depois, quando voltei, ele colocou em mim a pulseira de prata.
Ela existe até hoje, embora ele já tenha partido.
Sempre que a coloco me lembro dele…
E a uso com frequência.
Texto de Zara Gerhardt na Parêntese / Matinal.