sábado, 10 de agosto de 2024

A pulseira de prata


Ao chegar do campo no fim do dia, em Diamantina, Minas Gerais, fui recebida pelo dono da pensão apreensivo com um recado que recebera para mim. Não sei qual a combinação de meios de comunicação minha mãe usou, certamente incluiu tambores e sinais de fumaça, para me encontrar nas entranhas do Brasil no início dos anos 80. O recado dizia que eu deveria ligar para ela, em Porto Alegre.

Depois de longa espera na central telefônica local, numa péssima ligação cheia de ruídos e interferências, consegui compreender que meu pai tinha tido um AVC, estava hospitalizado e com o lado direito do corpo paralisado. Não corria risco de vida, mas minha presença em Porto Alegre era necessária.

Minha mãe sempre ficava sem ação perante as emergências médicas da família. Quando a minha avó ainda estava por aqui, era ela quem providenciava tudo, desde os primeiros socorros até o encaminhamento para a emergência de algum hospital. Na falta da minha avó, e, mesmo longe, eu passei a ser convocada para gerenciar este tipo de problema.

Certa de que levaria mais de 24 horas para chegar, na manhã seguinte consegui que um carro da empresa, com motorista, me levasse até Belo Horizonte. De lá segui até o Rio de Janeiro, onde eu estava lotada na época. No Rio, troquei as roupas de campo por agasalhos de inverno, e segui para Porto Alegre.

Sempre tive a certeza que nada aconteceria de mal com meu pai. Afinal de contas ele ainda era para mim aquela fortaleza indestrutível, na qual sempre me apoiei nos tempos difíceis, que me estimulou a perseguir os meus sonhos, segurou a família da minha mãe quando decidi estudar geologia e que me deu uma Beretta 7.35 de presente de formatura, para defesa pessoal. Era meu esteio e exemplo de vida. Aquele homenzarrão de quase dois metros de altura tinha que ser no mínimo imortal, mesmo aos seus sessenta e poucos anos, pensava eu. 

Me lembrando da sua voz tonitruante e das suas gargalhadas, enquanto dançava sozinho na sala, para desespero da minha mãe, preocupada com o que os vizinhos diriam, viajei tranquila, certa que ele se recuperaria logo.

Não estava preparada para vê-lo no hospital com o lado direito do corpo paralisado, falando e enxergando mal. Ele precisava de auxílio até para se alimentar, mas minimizava o seu estado na minha frente e eu fazia o mesmo para ele. Brincávamos de faz de conta, enquanto aprendíamos a lidar com a nova situação. O choque me fez ver que era a minha vez de estimulá-lo e incentivar a fazer os exercícios de fisioterapia, assegurando a ele que daquilo dependia a sua recuperação – embora eu, por desconhecimento, não acreditasse muito.

As posições tinham se invertido, meu pai era agora um ser frágil e dependente. Meu apoio moral passou a ser fundamental.

Fiquei na casa dos meus pais por cerca de dez dias, acompanhando meu pai no hospital e tratando de assuntos legais – ele não podia mais assinar cheques.

Nesse período pude verificar seu progresso no domínio dos movimentos do braço e perna direitos, devido à fisioterapia diária. Passei a incentivá-lo, assim como ele fez comigo durante toda a vida. Consultada, a fisioterapeuta dizia que a motricidade fina seria recobrada com brinquedos de armar, destes que se compram para crianças de 5 a 7 anos. 

Antes de viajar comprei diversos esqueletos de dinossauros para montar. Inicialmente meu pai dizia que eram coisas de criança e que eu o estava infantilizando. Sem falar nada, montei o primeiro na sua frente. Desmontei e o deixei lá.

Saindo para voltar para o Rio, vesti uma pulseira de prata que eu sempre usava. Na sua frente, comentei que o fecho era difícil de trancar e que, quando eu voltasse para a próxima visita eu queria que ele a fechasse no meu pulso. Ele riu e prometeu que faria. 

Escondida dele, minha mãe contava que a montagem dos esqueletos de dinossauro tinha se tornado o seu passatempo preferido, atividade cujo progresso era aferido por ele por meio de um cronômetro.

De longe, passei a acompanhar o seu progresso. Recuperou completamente os movimentos e, três meses depois, quando voltei, ele colocou em mim a pulseira de prata.

Ela existe até hoje, embora ele já tenha partido. 

Sempre que a coloco me lembro dele…

E a uso com frequência.


Texto de Zara Gerhardt na Parêntese / Matinal

segunda-feira, 5 de agosto de 2024

Pai



Descobri

um velho pedaço de papel

com sua letra


Nesses traços 

a sombra da sua mão

ainda está se mexendo


É só um velho pedaço de papel

mas nele você ainda

consegue conjugar

os verbos na primeira pessoa


Poema de Leonardo Gandolfi publicado na revista piauí de janeiro de 2024 - edição 208

Bares


Já era tarde

quando

a grande porta de metal 

baixou

mas nossos corações 

resistiram

abertos

vagando pela noite

em busca 

de outros corações e portas

prestes a fechar



Poema de Leonardo Gandolfi publicado na revista piauí de janeiro de 2024 - edição 208

domingo, 4 de agosto de 2024

200 anos de desigualdades


Os 200 anos da imigração alemã para o Brasil são uma oportunidade para refletir sobre o passado e repensar o futuro. A data da chegada dos 39 primeiros colonos a São Leopoldo (RS), berço da imigração alemã, é 25 de julho, também Dia Internacional da Mulher Negra Latino-Americana e Caribenha e Dia Nacional de Tereza de Benguela (líder quilombola).

Por ironia, a celebração da história de esperança e superação de um povo estrangeiro que fugiu de guerras e da pobreza em busca de uma vida melhor expõe as desigualdades perpetradas pelo Estado com o racismo institucional e o massacre indígena no Novo Mundo.

Nesse sentido, é muito interessante o documentário produzido pela Deutsche Welle (DW), TV pública alemã, sobre o bicentenário. O vídeo aborda a história a partir da perspectiva de uma família de imigrantes e, sem romantizar, tira o europeu do papel de herói, expondo capítulos carregados de "sonhos e traumas para lados e povos distintos".

No último país das Américas a abolir a escravização, o progresso e o desenvolvimento foram associados ao clareamento do povo. A diversidade populacional era vista como problema e o Estado decidiu atrair europeus oferecendo vantagens como terras e isenção de impostos.

Enquanto isso, os negros foram excluídos e estereotipados como seres desprovidos de saberes, e alijados de direitos. A chegada dos imigrantes resultou ainda na apropriação de terras e no massacre de povos indígenas que viviam na Região Sul. O governo de SC chegou a contratar mercenários (os "bugreiros") para dizimar a população originária, que foi reduzida em dois terços.

Não que a vida dos imigrantes alemães tenha sido fácil. E com certeza a chegada deles impulsionou nosso progresso. Mas não dá para seguir passando pano em crimes cometidos pelo Estado. A precariedade de vida de milhões de pretos, pardos e indígenas brasileiros é consequência também da política de imigração do século 19. E isso não dá mais para negar.


Texto de Ana Cristina Rosa na Folha de São Paulo.