É ridículo o esforço diário para se manter informado sobre eleições na Rússia, inteligência artificial, as declarações do Alexandre de Moraes, o livro novo da Annie Ernaux, a provável volta de Donald Trump e o filme "Oppenheimer". Tudo isso gera um sentimento de engajamento, de estar participando... Mas exatamente do quê?
Sobre as onipresentes redes, é ridículo se solidarizar com os moradores de rua compartilhando o vídeo que viralizou no Instagram com agressões cometidas por PMs, mas mudar de calçada quando vê uma família acampada no caminho ou um "noia" todo mijado em frente ao restaurante da moda ao lado do Copan, no centro de São Paulo. O engajamento por meio de hashtags e abaixo-assinados online só serve para limpar a própria consciência. Não muda nada.
É ridículo comprar alimentos orgânicos na feira do MST na Vila Madalena e chamar um Uber no aplicativo do iPhone porque é muita coisa para carregar. Na verdade, o ridículo dessa situação é acreditar que ao comprar meia dúzia de batatas e não sei mais o quê se está, de fato, fazendo algo pela justiça social no campo.
Também é ridículo ler o James Baldwin ou o Frantz Fanon e achar que está do mesmo lado dos jovens pretos da periferia que vêm sendo chacinados desde sempre pela PM paulista. É claro que vale a pena entender o papel de cada um na construção de uma sociedade obscenamente racista —o problema é extrapolar isso tudo e esconder o próprio privilégio, que jamais desaparece. Não, não dá para sentir na pele a precariedade da moradia na capital ao almoçar num domingo de sol na Ocupação 9 de Julho.
É ridículo discutir se a festinha de São João na escolinha construtivista do filho celebra ou não o colonizador enquanto os indígenas no Xingu são assassinados pelas mesmas forças econômicas que garantem o sorriso sincero do nosso ministro Haddad anunciando o crescimento do país e sua volta ao grupo das dez maiores economias do mundo.
É ridículo insistir que a esquerda não morreu e que é preciso apoiar o governo Lula, haja o que houver, porque é a única forma de garantir que a direita não volte ao poder. Ela vai voltar. Este é um país que se entregou de vez ao fascismo. A direita é violenta, ignorante e covarde, mas organizada e disposta a ir às últimas consequências. Talvez a sensação de que tudo virou absurdamente ridículo venha do confronto com essa força brutal, que sempre esteve aí, mas um pouco camuflada. A gente é que se fazia de desentendido e seguia com a conversa meio ingênua, meio cínica sobre a construção de um país justo e desenvolvido para todos.
É bonito continuar se emocionando com as canções do Pixinguinha e do Chico Buarque, com uma boa feijoada com caipirinha, com "A Hora da Estrela", da Clarice, com um drible desconcertante do Garrincha e com os filmes do Glauber. Só é preciso aceitar que isso tudo não muda absolutamente nada.
É duro, mas é necessário assumir que o Brasil de hoje é feito de cultos bregas em igrejas cafonas, música sertaneja no último volume, machões imbrocháveis, estandes de tiro e muito, mas muito agro. O país do futuro chegou, gostemos ou não.
Tenho 47 anos e sinto que a minha vida se tornou uma enorme piada de mau gosto. Desconfio que nem sempre foi assim. Mas pouco importa: diante de Gaza, tudo é ridículo.
Texto de Tiago Ferro na Folha de São Paulo.
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