terça-feira, 23 de abril de 2024

Salman Rushdie mostra que inveja dos fanáticos é mais forte que suas crenças


Não é preciso morrer para escrever uma obra-prima. Mas Salman Rushdie, dessa vez, exagerou: no dia 12 de agosto de 2022, enquanto discursava no palco de um anfiteatro, foi brutalmente esfaqueado por um criminoso de 24 anos.

Sobreviveu, ninguém sabe como. E publicou agora o relato dessa quase-morte –"Faca: Reflexões sobre um Atentado"–, com uma lucidez e ironia que só não são invejáveis porque o horror que as permitiu não é coisa que se inveje.

A ironia está no lugar do crime e no motivo que levou Rushdie até lá: Chautauqua, pequena cidade no norte do estado de Nova York, para falar sobre a importância de proteger os escritores dos seus eventuais inimigos.

Mal comparando, é como imaginar Chapeuzinho Vermelho falando sobre os perigos da floresta para uma alcateia de lobos.

Foi então que um lobo se levantou da audiência, correu para Rushdie e, durante 27 segundos (o tempo que demora a recitar um soneto de Shakespeare, esclarece ele), foi desferindo golpes sobre golpes –no rosto, no peito, no olho direito–, exatamente como Rushdie sempre imaginou que aconteceria.

Essa familiaridade tem dois sentidos aqui. Durante 33 anos, o escritor viveu sob a condenação à morte sentenciada pelo aiatolá iraniano Ruhollah Khomeini depois da publicação do livro "Os Versos Satânicos". Meia dúzia de complôs foram tentados, e frustrados, contra o escritor durante esse tempo.

Mas, dois dias antes do ataque, Rushdie também sonhou com o encontro fatal: no pesadelo, viu-se no meio de um anfiteatro romano, à mercê da fúria de um gladiador.

Quando acordou, o homem que não acredita em premonições pensou seriamente em cancelar a sua viagem a Chautauqua.

Não admira que, no momento do ataque, uma frase e uma pergunta tenham cruzado a sua mente. "Aqui está você", pensou, com a resignação de um condenado. "Mas por que agora?", perguntou, com terrível incredulidade. O passado não tinha já passado?

Pelo visto, não. O criminoso lera apenas duas páginas do célebre livro. A radicalização acontecera no YouTube, assistindo a vídeos sobre Rushdie e suas alegadas heresias. Foi o que bastou.

Apesar da mediocridade intelectual do personagem, Rushdie tenta falar com ele. Não na realidade –Rushdie não é Beckett, que fez questão de se encontrar com seu agressor parisiense depois de também ter sido esfaqueado.

O encontro é uma simulação literária e um dos grandes momentos do livro. Discutem ambos a crença e a descrença, Deus e os seus intérpretes, a sociedade laica e as suas tentações.

No fim, Rushdie é levado a concluir, ou talvez a confirmar, a futilidade de qualquer conversa. Tudo é ressentimento no coração de um terrorista. Ele, Rushdie, não passara de um pretexto. "Qual foi o rosto que você viu quando me tentou matar?"

Notável pergunta. Terá sido o rosto do pai? Da mãe? Dos irmãos?

Do amor não correspondido?

Dos amigos que se perderam, ou que nunca apareceram?

Ou terá sido o rosto do próprio terrorista?

Sim, Salman Rushdie é um pretexto, mas Deus também é. "Os homens tendem a ter as crenças que se adequam às suas paixões", escreve Rushdie, citando Bertrand Russell. "Os homens cruéis acreditam num Deus cruel e usam essa crença para desculpar a sua crueldade. Só os homens bondosos acreditam num Deus bondoso e seriam bondosos em qualquer caso."

O criminoso é irrelevante, conclui o autor. O criminoso é ninguém. Perdoá-lo ou não, odiá-lo ou não, entender seus motivos ou não –tudo isso é conferir ao inominado (nunca lemos o nome do criminoso no livro) uma dignidade, ou uma atenção, que ele não merece.

O que resta, então?

Para Rushdie, continuar. A verdadeira vitória é poder continuar amando, escrevendo, vivendo, mesmo que a felicidade possível exiba as cicatrizes de um passado que não se esquece.

Continuar, em suma, é responder à violência com a arte –e talvez seja isso que perturbe tanto os fanáticos: a incapacidade para saírem do mundo estreito e violento em que vivem, transfigurando seus medos e fracassos em algo de belo e duradouro.

Agora que penso nisso, é uma hipótese normalmente ignorada nas discussões sobre a liberdade de expressão. A inveja dos fanáticos é mais forte que suas crenças ou sentimentos.


Texto de João Pereira Coutinho na Folha de São Paulo

segunda-feira, 8 de abril de 2024

Diante de Gaza


É ridículo o esforço diário para se manter informado sobre eleições na Rússiainteligência artificial, as declarações do Alexandre de Moraes, o livro novo da Annie Ernaux, a provável volta de Donald Trump e o filme "Oppenheimer". Tudo isso gera um sentimento de engajamento, de estar participando... Mas exatamente do quê?

Sobre as onipresentes redes, é ridículo se solidarizar com os moradores de rua compartilhando o vídeo que viralizou no Instagram com agressões cometidas por PMs, mas mudar de calçada quando vê uma família acampada no caminho ou um "noia" todo mijado em frente ao restaurante da moda ao lado do Copan, no centro de São Paulo. O engajamento por meio de hashtags e abaixo-assinados online só serve para limpar a própria consciência. Não muda nada.

É ridículo comprar alimentos orgânicos na feira do MST na Vila Madalena e chamar um Uber no aplicativo do iPhone porque é muita coisa para carregar. Na verdade, o ridículo dessa situação é acreditar que ao comprar meia dúzia de batatas e não sei mais o quê se está, de fato, fazendo algo pela justiça social no campo.

Também é ridículo ler o James Baldwin ou o Frantz Fanon e achar que está do mesmo lado dos jovens pretos da periferia que vêm sendo chacinados desde sempre pela PM paulista. É claro que vale a pena entender o papel de cada um na construção de uma sociedade obscenamente racista —o problema é extrapolar isso tudo e esconder o próprio privilégio, que jamais desaparece. Não, não dá para sentir na pele a precariedade da moradia na capital ao almoçar num domingo de sol na Ocupação 9 de Julho.

É ridículo discutir se a festinha de São João na escolinha construtivista do filho celebra ou não o colonizador enquanto os indígenas no Xingu são assassinados pelas mesmas forças econômicas que garantem o sorriso sincero do nosso ministro Haddad anunciando o crescimento do país e sua volta ao grupo das dez maiores economias do mundo.

É ridículo insistir que a esquerda não morreu e que é preciso apoiar o governo Lula, haja o que houver, porque é a única forma de garantir que a direita não volte ao poder. Ela vai voltar. Este é um país que se entregou de vez ao fascismo. A direita é violenta, ignorante e covarde, mas organizada e disposta a ir às últimas consequências. Talvez a sensação de que tudo virou absurdamente ridículo venha do confronto com essa força brutal, que sempre esteve aí, mas um pouco camuflada. A gente é que se fazia de desentendido e seguia com a conversa meio ingênua, meio cínica sobre a construção de um país justo e desenvolvido para todos.

É bonito continuar se emocionando com as canções do Pixinguinha e do Chico Buarque, com uma boa feijoada com caipirinha, com "A Hora da Estrela", da Clarice, com um drible desconcertante do Garrincha e com os filmes do Glauber. Só é preciso aceitar que isso tudo não muda absolutamente nada.

É duro, mas é necessário assumir que o Brasil de hoje é feito de cultos bregas em igrejas cafonas, música sertaneja no último volume, machões imbrocháveis, estandes de tiro e muito, mas muito agro. O país do futuro chegou, gostemos ou não.

Tenho 47 anos e sinto que a minha vida se tornou uma enorme piada de mau gosto. Desconfio que nem sempre foi assim. Mas pouco importa: diante de Gaza, tudo é ridículo.


Texto de Tiago Ferro na Folha de São Paulo.