Não teve para mais ninguém em 2023. Sem contestação, o trio de donos das Lojas Americanas abiscoitou sozinho o rol de 200 malas do ano. Palmas para Jorge Paulo Lemann, Carlos Alberto Sicupira e Marcel Telles. Eles deram lições ao cubo de hipocrisia e arrogância.
Lava Jato, Petrolão, anões do Orçamento, caso Collor, cofre do Adhemar? Coisa de amadores. Não há nos anais das fraudes nativas um golpe do peso do arquitetado pelo trio e seu séquito de executivos vorazes e venais. Os fidalgos –abracadabra!– sumiram com R$ 40 bilhões.
Até 11 de janeiro, quando o elegante roubo-bomba estourou, o triunvirato das Lojas Americanas era tido como o suprassumo da modernice empresarial. "Ah, se o negocismo pátrio se espelhasse nos usos e costumes de Lemann, Sicupira e Telles", suspiravam os liberais de ponta.
Com a trinca de azes à testa da economia, ela seria um modelo de pujança. Não haveria o coitadismo da legislação trabalhista; setores cartelizados; subsídios dados de mão beijada a cupinchas por políticos, essa gentinha malacafenta. Para os "Americanos", só valiam o realismo e o mérito.
Por realismo entenda-se tsunamis de demissões de quem não "performasse"; a fixação de metas insensatas; a cobrança de resultados de chicote na mão; o atraso metódico e meticuloso do pagamento de fornecedores, o corte dos custos mais comezinhos.
E por mérito compreenda-se a criação de uma casta de capitães-do-mato fantasiados de diretores, damas e cavalheiros com MBA no exterior e sem qualquer laivo de humanidade. A eles cabia açoitar os remadores das galés de "Ben-Hur".
O marketing em benefício próprio era essencial aos morubixabas das Americanas. Eles fizeram com que acólitos produzissem livros e reportagens que, corajosamente, os enalteciam. Não bastava aos nababos serem os homens mais ricos do Brasil.
Queriam ser amados.
Daí brotou a ladainha, entoada 40 bilhões de vezes, que Lemann jogava tênis e dava bolsas para bugres irem a Harvard. Que Telles era sensível e amava as artes. Que Carlos Alberto Sicupira preferia ser chamado de Beto e se dizia entendido em segurança pública.
Ai de quem ousasse duvidar das loas aos sultões de sapatênis, tão gente como a gente. Os que dissessem o óbvio –que se tratava de mata-mouros empenhados na acumulação primitiva– eram logo rotulados de invejosos, ressentidos, tipinhos à toa e sem conserto, que nojo.
Veio o 11 de janeiro e o marketing se exibiu em plenitude. O rombo de R$ 40 bilhões foi logo classificado de "inconsistências contábeis". Em matéria de eufemismo, mesmo num idioma calcinado pela corrupção em prol dos poderosos, foi do jamais visto.
Montou-se uma CPI para averiguar as malfeitorias da santíssima trindade do capital. Vossas Excelências, a fina flor do parlamento, foram de uma sabujice ímpar. Só faltou perguntarem aos grã-finos de grana preta se queriam um lustro nas ferraduras. Vai uma graxa, doutor?
Para surpresa de ninguém, a CPI concluiu, apesar das pirâmides de provas, que roubo houve, mas não ladrões. A dinheirama sumiu e não há Sherlock capaz de saber quem a surrupiou. Foi um veredito idêntico ao dos impolutos catões que zelam pelas nossas boas práticas empresariais.
Não vamos prejulgar. Nada de punitivismo. Afinal, em que pese a cautela, alguns foram castigados. Num só dia, demitiram-se 1.400 funcionários das Americanas. Centenas de fornecedores ficaram a ver navios. E a freguesia amargou uma espera labiríntica pelo que pagou.
Há duas hipóteses para explicar a gatunagem. Numa, Sicupira, Telles e Lemann não seriam exímios gestores das suas empresas. Eram na verdade toupeiras, suavemente engambeladas, anos a fio, pelos executivos que cevaram.
Na segunda hipótese, sempre souberam das traficâncias na cúpula das Americanas. Fizeram vista grossa para a dilapidação da companhia porque ela os enriquecia. E, caras simples que são, precisavam da bufunfa para comprar raquetes, admirar quadros, estudar segurança pública.
A tríade não tem o que temer. Aqui, não é de bom tom encarcerar patrões, mesmo que emporcalhados. Pergunte a Emilio Odebrecht e aos JBS, que trotam por aí leves, soltos e rindo da sua cara. Não faltará manteiga no pão dos Telles, dos Sicupira e dos Lemann per "omnia saecula saeculorum".
Falando em herança de butins, Marcel Telles aproveitou a semana morta entre o Natal e o Réveillon para sussurrar, na calada da noite, que transferiu R$ 29,5 bilhões da sua fortuna para o filhote. Meritocracia é isso aí.
Reprodução de texto de Mario Sergio Conti, na Folha de São Paulo.