Gosto daqueles manuais de boas maneiras que aconselhavam os cavalheiros a nunca falarem de religião ou política. Então penso: metade dos problemas deixaria de existir se essa regra fosse seguida em público.
Não sigo. Parcialmente. Falo de política com regularidade, para mal dos meus pecados. Mas, em matéria religiosa, minha boca é uma tumba.
Questão de pudor. Deus é um assunto tão pessoal como certas matérias do coração. Não discuto os meus amores. Não discuto os amores dos outros.
O humorista David Baddiel discorda. Depois de nos dar o seu "Jews Don’t Count" —ou judeus não contam, em português—, um ensaio primoroso sobre a exclusão dos judeus das lutas antirracistas contemporâneas, Baddiel se ocupa da religião com "The God Desire: On Being a Reluctant Atheist" —algo como o desejo de Deus: ser um ateu relutante.
Pretender encontrar aqui um tratado de base teológica, como alguns críticos tentaram, é um erro e um absurdo. Baddiel é um humorista, repito, e as perguntas que ele faz valem pelas perplexidades que evocam e pela graça que transportam.
Começa com um conselho: se tiverem um filho com medo da morte, nunca lhe digam que é como um longo sono do qual nunca se desperta. Eles estarão a criar uma pessoa insone.
Foi isso que aconteceu com Baddiel: a mãe tentou consolá-lo com um exemplo prosaico. O resultado é que, todas as noites, a criança marchava para o leito coberta de terror.
(Uma confissão: aconteceu o mesmo comigo, embora minha mãe seja considerada inocente. Eu mesmo tratei de fazer essa comparação fatal.)
É esse terror que explica o desejo de Deus, embora não no caso do autor. Baddiel se declara ateu. Mas a primeira crítica do livro vai para ateus célebres —os ateus machões, escreve ele, como Christopher Hitchens, Richard Dawkins etc.— que riem desse desejo.
O fato de Deus não existir, argumenta Baddiel, não significa que o desejo também não existe, que não seja real, que não seja de fato significativo.
O desejo de Deus revela traços importantes da nossa humanidade —a busca de consolação, de ordem ou de sentido— que seria demais desprezar como uma mera fraqueza vinda de mentes débeis.
Quando os ateus machões tratam as pessoas religiosas como bebês medrosos ou ignorantes, eles se esquecem, ou pelo menos fingem desconhecer, que todos nós somos bebês medrosos ou ignorantes na aventura da existência.
A grande diferença, acrescento eu, é que alguns conseguem disfarçar melhor que outros. Ou, então, procuram outras saídas para aliviar o próprio peso de sua mortalidade.
Além disso, e olhando para a sua própria identidade como judeu, não lhe parece contraditório que a descrença em Deus conviva com a crença na importância da religião, dos seus ritos, dos seus preceitos.
Ao longo da história, foi precisamente esse patrimônio religioso que permitiu a sobrevivência dos judeus em meio às condições mais adversas.
Se isso não é um argumento favorável à existência de Deus, é seguramente um argumento favorável à existência e à continuidade da religião judaica.
O livro de David Baddiel é uma meditação divertida e sincera sobre as perplexidades de um ateu —alguém que, apesar de não conseguir acreditar em Deus, até gostaria que ele existisse em alguma capacidade.
Claro que, usando de uma lente muito mais rigorosa, algumas dessas perplexidades relatadas começam a estalar.
Um exemplo: se é o medo da morte que explica o desejo de Deus, como justificar esse desejo em pessoas que não temem particularmente o fim?
Talvez admitindo que o medo da morte nem sempre é a razão da fé. O próprio Baddiel, aliás, encarna essa possibilidade: apesar do seu medo, e até do seu desejo para que Deus existisse, a fé está-lhe vedada.
Outro exemplo, dessa vez formulado pela mente do próprio autor: se é o desejo que explica a crença na existência de Deus, o que dizer daquelas pessoas que acreditam nessa existência, embora preferissem que Deus não existisse, de fato?
Infelizmente, Baddiel não aprofunda essa possibilidade disteísta, cujo potencial cômico é imenso. Afinal, haverá coisa mais divertida do que odiar o deus em que se acredita?
Pensando melhor, talvez haja sim: odiar um deus em que não se acredita, o que acaba por se tornar a atitude típica dos ditos machões ateus.
O fato de David Baddiel não cair justamente nessa armadilha, olhando para a fé com um misto de muita curiosidade, imaginação e simpatia, já o põe vários níveis acima de sábios e estudiosos que são muito mais eruditos.
Texto de João Pereira Coutinho na Folha de São Paulo.
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