quinta-feira, 26 de janeiro de 2023

Silvestre 2°, o matemático que virou papa


Por volta de 972, Gerbert d’Aurillac já é considerado o maior intelectual da Europa. Tutor do futuro imperador romano Oto 2°, ele torna-se também diretor da escola catedral de Reims, uma das instituições de ensino mais avançadas do continente, que, sob a sua liderança, vai alcançar o ápice da glória como centro de conhecimento.

Entre as grandes contribuições de Gerbert está a introdução na Europa da numeração decimal, o sistema de numeração hindu-árabe que utilizamos até hoje. Na época, cálculos eram feitos por meio da numeração romana, que é muito pouco prática para isso. Gerbert ensinou como fazer as quatro operações da aritmética de forma muito mais rápida por meio de ábacos.

Infelizmente, seus ensinamentos sofreram oposição da poderosa classe clerical, que monopolizava o conhecimento dos números e desconfiava de ensinamentos vindos do mundo islâmico. Por isso, o ábaco e a notação decimal só se tornariam populares na Europa bem mais tarde, a partir da publicação do "Liber Abaci", do italiano Leonardo Fibonacci, em 1202.

A astronomia era outro domínio em que Gerbert se destacava fortemente. Especialmente devemos a ele a introdução no Ocidente do astrolábio, um instrumento de observação e cálculo extremamente preciso que teria um papel fundamental na Era dos Descobrimentos.

Gerbert também deixou importante obra escrita na música. Um de seus trabalhos explica como calcular o comprimento dos tubos de um órgão de modo a cobrir uma banda de duas oitavas, o que envolve problemas matemáticos interessantes.

Em geometria, suas notas de aula para os alunos de Reims foram o trabalho mais avançado sobre o tema na Europa durante dois séculos, só vindo a ser suplantado pela tradução para o latim dos "Elementos de Euclides" (a partir do árabe, já que o original grego se perdeu).

A par de seu trabalho como estudioso e acadêmico, Gerbert foi também um ator relevante nas grandes questões políticas do seu tempo. Foi fundamental para a ascensão de Hugo Capeto ao trono da França em 987. Quatro anos depois foi recompensado com a nomeação como arcebispo de Reims, mas a sua oposição a Roma fez com que fosse excomungado e deposto.

Contou com a proteção e a amizade do novo imperador romano, Oto 3º, de quem também fora tutor. Oto nomeou-o arcebispo de Ravena, em 998, e no ano seguinte fez com que ele fosse eleito papa.

Simbolicamente, escolheu ser chamado Silvestre 2º, em homenagem ao papa Silvestre 1º, que fora colaborador próximo de outro imperador romano, Constantino, o Grande.

Gerbert morreu em 1003 sem ter se livrado da suspeita de ter feito um pacto satânico para impulsionar sua fabulosa carreira. A tal ponto que em 1648 a sua tumba chegou a ser aberta para comprovar que não abrigava um demônio.


Texto de Marcelo Viana, na Folha de São Paulo.

quinta-feira, 12 de janeiro de 2023

Direitos humanos para humanos golpistas


"E a turma dos direitos humanos, onde está agora?", esbravejam os invasores detidos após defecarem, uns literalmente, na democracia brasileira. Bem, prazer, nós somos a turma dos direitos humanos, tudo bem por aí? Pelas imagens de seus celulares, parece que sim. Apesar de vocês matarem idosas de fake news e confundirem prisão com campo de concentração, mesmo apoiando presidente que usa retórica e estética neonazistas, estamos aqui.

Faz tempo que não nos falamos. Desde que decidiram se aventurar num golpe de Estado para um político para quem direitos humanos é "esterco da vagabundagem", ficou difícil nosso diálogo. É até compreensível que, agora que a coisa ficou branca (se preta tivesse ficado, a polícia já teria confundido a sua bandeira do Brasil com fuzil), vocês lembrem que existimos. Sem ressentimentos. Veja: o problema do "bandido bom é bandido morto" é que fica mais difícil apoiar o adágio quando o bandido é você.

Quando é você no Complexo Penitenciário da Papuda fica mais difícil defender que a PM entre, execute 111 patriotas e depois o presidente da República os perdoe por indulto. Quando é você o alvo do Judiciário fica mais difícil defender que a imprensa não exista, ou pior sair por aí defendendo regime que esquarteja jornalistas. Quando você é o terrorista da vez, fica difícil criticar a esquerda por retirar da lei de terrorismo atos por motivação política.

Foi a nossa turma, a dos direitos humanos, que inventou que vulneráveis não devem ser detidos (600 idosos, mulheres e crianças foram liberados pela PF); que prisão incomunicável, prática da ditadura militar, é ilegal e, por isso, o seu nome está em listas para que familiares e advogados o encontre; que em até 24 horas você deve passar por uma audiência para ver se há sinais de tortura; que crianças e adolescentes devem ser protegidos pelo Conselho Tutelar (como 23 deles o foram); e que até o Alexandre de Moraes tem que seguir o rito legal. Inventamos tudo isso. De nada, viu?


Texto de Thiago Amparo, na Folha de São Paulo

segunda-feira, 9 de janeiro de 2023

Assim se passaram quatro anos


Há dias, numa roda de amigos que falavam dos 21 anos da ditadura (1964-1985) e de como os militares tinham vergonha de sair à rua fardados, o filho adolescente de um de nós perguntou: "Se eles eram tão impopulares, por que vocês deixaram que ficassem tanto tempo no poder?".

Boa pergunta e difícil de responder. Alguém explicou que os militares não estavam sozinhos, que contavam com civis dispostos a alterar e corromper as instituições para lhes dar respaldo jurídico. Que, em certo momento, rapazes e moças, com coragem e ingenuidade suicidas, pegaram em armas para tentar derrubá-los, mas foram esmagados à custa de prisão, tortura e mortes; e que, em outro, fomos às ruas aos milhões exigindo eleições diretas —em vão. Derrotados, conformamo-nos em esperar que os milicos se cansassem e nos devolvessem o país.

No futuro, outro adolescente perguntará por que aturamos viver sob Jair Bolsonaro durante quatro anos se, já no dia de sua posse, em 2019, ele declarou que iria destruir tudo para depois "reconstruir". Significava fazer do Brasil ruínas e imperar sobre elas no primeiro mandato e, no segundo, consolidar uma nova ordem legal de modo a se eternizar no poder. Para tanto, Bolsonaro passou quatro anos nos ameaçando com o Exército (o "seu Exército"), o feitor armado a seu serviço, pronto a um golpe para nos enquadrar.

Um dia, de fato, a constatação de que o Exército se deixou usar por um desclassificado será uma resposta. Mas não a única. Deveremos olhar para nós mesmos e perguntar por que, quando a situação exigia, não saímos às ruas para protestar, promover comícios, denunciar as fake news, apoiar a imprensa independente, a CPI da Covid e os ministros do STF e do TSE, chamar os liras e aras pelos nomes que mereciam, enfim, mostrar que existíamos —como os bolsonaristas de então e até hoje.

Não fizemos isso, e assim se passaram quatro anos.


Texto de Ruy Castro, na Folha de São Paulo

Eugênio, o ingênuo


Eugênio é ingênuo e ficou incrédulo quando Lula subiu a rampa. Uma brisa soprou em seu peito ao ver a faixa presidencial passar pelas mãos do cacique Raoni e de outras pessoas que representam a diversidade do povo brasileiro. Eugênio, ingênuo, chorou.

Eugênio é ingênuo e ficou trêmulo com a entrada triunfal de Sonia Guajajara no inédito Ministério dos Povos Indígenas. Com a volta por cima de Marina Silva no Meio Ambiente. Com uma artista negra, talentosa e forte na Cultura, que voltou a ganhar a envergadura de ministério.

Compartilhou, emocionado, o discurso de Silvio Almeida ao assumir o Ministério dos Direitos Humanos. Eugênio sentiu que sua existência era valorizada.

Acreditou que, enfim, teremos um Ministro da Educação que saiba usar a crase.

Eugênio é ingênuo e acreditou que as novas forças do poder emanaram uma nova onda de solidariedade. E que os símbolos e as ações se complementaram de forma contundente. Acreditou que a voz onipresente do Mercado vai se enquadrar a essa nova perspectiva. E que será apenas mais uma voz a ser ouvida e debatida dentro do jogo democrático.

Acreditou que o identitarismo subiu num novo patamar e assumiu, finalmente, novas posições de poder. Que a luta pela linguagem neutra foi importante, mas agora tem papel secundário.

Que a era dos cancelamentos foi um expurgo necessário, mas que agora uma nova ordem social se agiganta e será capaz de institucionalizar de forma democrática o combate ao racismomachismo, misoginia e homofobia.

Acreditou que o bolsonarismo caiu enfraquecido, quase flácido, soando como um pum de palhaço. Que o ímpeto golpista foi encerrado. E que, de tanto cair em fake news, o gado aprendeu a lição.

Acreditou que o novo presidente é capaz de revogar todo o legado de Bolsonaro. Que a transparência vai soterrar os sigilos de cem anos. Que as rachadinhas acabaram e que os laços republicanos com milicianos estão no passado.

Eugênio é ingênuo e acreditou que a esquerda latino-americana aprendeu com seus erros e vai se inspirar mais nos modelos europeus de bem estar social do que nas ditaduras de Cuba e da Venezuela.

Acreditou que a Amazônia é a chave para uma nova economia do século 21. E que o Brasil é peça-chave, talvez o único país capaz de trazer uma palavra nova para a falta de perspectiva global.

Eugênio não é idiota como Eremildo. Longe disso. Eugênio acredita que a ingenuidade possa até ser positiva.


Texto de Renato Terra, na Folha de São Paulo