Em frente a uma casa de dois andares com ares de início do século XX, está encostada uma bicicleta Caloi Ceci, de cor branca e cesto na frente. No tempo estamos nas primeiras horas de uma madrugada amena no outono do ano de 2030. Mas quem passa e olha o retrato da bicicleta encostada na casa, fica a pensar se, de fato, o ano em que acredita estar, é o mesmo no tempo da casa da Caloi.
O que os passantes não sabem é que dentro da casa, escolhida a dedo pelas suas paredes bastante grossas e poucas aberturas para a rua, a impressora a laser de última geração pulsa folhas de texto que, reunidas, são capítulos semanais de livros marginalizados ou banidos. Inquieto, caminhando de um lado para o outro, já de capacete Altino fala e gesticula:
- Porra Comendador, é pra hoje ou pra amanhã?
- Calma, calma. Só mais duas impressões. Rapidinho, olha aí já tá quase.
- Bah, a comandante tá perguntando se é o Apolinário que fazendo essa impressão?
- Já pus no saco, só colocar o peso e tu vai.
Tratava-se de uma célula de resistência da Central Revolucionária pela Liberdade de Pensar - CERELEPE. Cada célula tinha vários componentes e se chamavam por nome de escritores. Os componentes desta célula se denominavam Moacyres. Explico.
Na primeira década do século XXI surgiram movimentos que pregavam o retorno a uma moral mais rígida, a partir de conceitos muito claros sobre o comportamento das pessoas, preocupados com a melhor formação possível de suas crianças. Em poucos anos, ideias contrárias foram sendo atacadas, até que chegaram a raiz do problema: pensar. O que nos faz pensar? A dúvida. Como se desperta a dúvida? Com palavras. E palavras são livros. A solução: Index Librorum Prohibitorum.
Altino já havia arrumado a quase centena de textos impressos na cesta adaptada a bicicleta (não sem antes reclamar do modelo Ceci). Partiu jogando os pacotes nas portas e janelas das casas pelo caminho. Não podia ser muito rápido para não pular muitas casas e nem muito devagar para não ser apanhado.
- Leiam, leiam! Leiam Scliar! Leiam Penz! Leiam todos os que têm a santa sede de escrever e pensar!
A medida que passava, portas se abriam, luzes eram acesas e a madrugada corria, agora, iluminada.
Julho 2022. Texto de Afonso Mossry Sperb, cronista. Ele pode ser contatado em seu emeio: mossry@uol.com.br .
Tomara que alguém se lembre de lê-la novamente em 2030 para ver se a profecia se concretizou.
Muito bom! Feliz com a participação... Nos vemos em 2030!
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