domingo, 24 de julho de 2022

Revolução


Em frente a uma casa de dois andares com ares de início do século XX, está encostada uma bicicleta Caloi Ceci, de cor branca e cesto na frente. No tempo estamos nas primeiras horas de uma madrugada amena no outono do ano de 2030. Mas quem passa e olha o retrato da bicicleta encostada na casa, fica a pensar se, de fato, o ano em que acredita estar, é o mesmo no tempo da casa da Caloi.

O que os passantes não sabem é que dentro da casa, escolhida a dedo pelas suas paredes bastante grossas e poucas aberturas para a rua, a impressora a laser de última geração pulsa folhas de texto que, reunidas, são capítulos semanais de livros marginalizados ou banidos. Inquieto, caminhando de um lado para o outro, já de capacete Altino fala e gesticula:

- Porra Comendador, é pra hoje ou pra amanhã?

- Calma, calma. Só mais duas impressões. Rapidinho, olha aí já tá quase. 

- Bah, a comandante tá perguntando se é o Apolinário que fazendo essa impressão? 

- Já pus no saco, só colocar o peso e tu vai. 

Tratava-se de uma célula de resistência da Central Revolucionária pela Liberdade de Pensar - CERELEPE. Cada célula tinha vários componentes e se chamavam por nome de escritores. Os componentes desta célula se denominavam Moacyres. Explico. 

Na primeira década do século XXI surgiram movimentos que pregavam o retorno a uma moral mais rígida, a partir de conceitos muito claros sobre o comportamento das pessoas, preocupados com a melhor formação possível de suas crianças. Em poucos anos, ideias contrárias foram sendo atacadas, até que chegaram a raiz do problema: pensar. O que nos faz pensar? A dúvida. Como se desperta a dúvida? Com palavras. E palavras são livros. A solução: Index Librorum Prohibitorum. 

Altino já havia arrumado a quase centena de textos impressos na cesta adaptada a bicicleta (não sem antes reclamar do modelo Ceci). Partiu jogando os pacotes nas portas e janelas das casas pelo caminho. Não podia ser muito rápido para não pular muitas casas e nem muito devagar para não ser apanhado.

- Leiam, leiam! Leiam Scliar! Leiam Penz! Leiam todos os que têm a santa sede de escrever e pensar!

A medida que passava, portas se abriam, luzes eram acesas e a madrugada corria, agora, iluminada.


Julho 2022. Texto de Afonso Mossry Sperb, cronista. Ele pode ser contatado em seu emeio: mossry@uol.com.br .   

Tomara que alguém se lembre de lê-la novamente em 2030 para ver se a profecia se concretizou.

sábado, 2 de julho de 2022

Selênio


Enquanto coisas mais sérias acontecem no planeta, eu trago aqui uma discussão menor. Aprendi, já tem um tempo, que a crônica pode e deve tratar de assuntos bestas. Se você duvida de mim, faça o curso de crônicas do genial escritor Fabrício Corsaletti ou leia um texto primoroso do saudoso professor e crítico literário Antônio Candido chamado "A vida ao rés do chão".

A médica ayurvédica me mandou tomar glutamina, ferro quelado, zinco quelado, selênio, tinta de sucupira, unha de gato, cabelo de milho, chapéu de couro e pata de vaca.

Como não faço nada sem avisar meu clínico geral, mandei a receita pra esse senhor, que me gravou um áudio gritando: "Selênio? Comprar selênio em farmácia? Ora, minha filha, você coma três castanhas-do-pará por dia e não me encha o saco".

Achei muito interessante que diante de coisas como chapéu de couro e cabelo de milho ele tenha pirado justo com o selênio. E por que apesar de ocupada eu sou insuportável como uma desocupada, perguntei o que o doutor achava do resto da receita. Ele respondeu: acho criminosa. Eu discordo, mas adoro viver nesse limite perigosíssimo entre o antibiótico e a maca peruana.

Dos meus dois aos meus 16 anos, eu jamais respirei sem inflar uma pequena bexiga de muco pra fora das narinas. Eu não sabia sequer como era a minha voz ou como era ver a vida sem estar presa em um capacete de ranho. Quem me ajudou? O otorrino das estrelas? O laringologista do momento? Não, a homeopatia. Perdão. Nunca deixe de me cumprimentar em festas, Dráuzio Varella.

Nas últimas 65 viroses que minha filha teve, o sintoma "tosse" podia durar até dois meses. Quem resolveu esse problema? Os corticoides tópicos? Os vídeos que ensinam o banho turco da fuça com seringas cheias de soro? Não, foram as bolinhas antroposóficas.

Quando eu estava querendo deitar no chão dos supermercados e dormir, porque na pós gravidez veio a pós cesárea e então veio a pós amamentação, e então veio a pós "eu nunca mais dormi na vida", eu descobri a medicina chinesa. E tratei o rim. E meu vigor apareceu em casa como se eu tivesse comprado juventude pelo site da Amazon e pagado uma taxa extra para entrega rápida.

Mas reforçando aqui rapidamente, porque sou metade histérica e metade obsessiva (sou um petit gateau de desordens mentais, mas venho tratando isso com a ayurveda): se eu escolho escrever sobre o selênio não significa que eu não saiba que o mundo está acabando. E não significa que eu não esteja como você, achando insuportável que nunca acabe essa sensação de mundo acabando.

Eu sei que você e seus amigos estão com sinusites e asmas. Eu mesma estava com pneumonia semana passada. Existe sim a Covid longa. Mesmo sem Covid, estamos com Covid há quase três anos. Ininterruptamente.

Você se lembra de alguma vez na vida ter ficado tão preso no tema doença, e por tanto tempo? Mas o que vamos fazer quando a cortisona nos deixa parecendo baiacus ambulantes andando pela cidade e mesmo assim continuamos doentes? Eu voto na medicina alternativa, desde que ela venha acompanhada dos médicos que a odeiam. Esse mix de opostos é o que chamo de rede de apoio. Um pouco de salada, um pouco de droga.

Rapidamente: defendo aborto, defendo voto eletrônico, o fim da guerra, a Patrícia Campos Melo, o Conrado Hubner, A Klara Castanho. Eu sei todos os temas sérios e eu respeito a alopatia e todos aqueles estudos gringos que a alopatia respeita. Mas eu gosto de terapias alternativas.

Primeiro porque eu acredito que há mais coisas entre o céu e os diplomas da USP do que a nossa vã filosofia e lálálá. Segundo porque eu não aguento mais ficar doente e a Bayer não está dando conta e, por último, porque eu sou uma perua branca loira que mora em Higienópolis e "cuida da saúde" compulsivamente mesmo morando a uma quadra de 34 famílias procurando comida no lixo.

Sinto culpa? Sinto nojo da minha existência? Acho que seguiremos doentes enquanto as pessoas continuarem passando fome na porta da nossa casa? Sinto que o país está em frangalhos enquanto eu pesquiso selênio no Google? O tempo todo. Mesmo assim eu continuo marcando consultas com toda a sorte de médicos holísticos e acreditando que o própolis verde vai reestabelecer o buraco primitivo que carrego no peito.

Comecei hoje o selênio.


Texto de Tati Bernardi, na Folha de São Paulo