quarta-feira, 27 de fevereiro de 2019

Um crime contra o colarinho branco

Uma das obrigações do colunista de um grande jornal é criar polêmicas. Sei que o Brasil já está imerso em um monte de polêmicas e extremamente polarizado, dividido entre bolsonaristas e comunistas, palmeirenses e corintianos, terraplanistas e redondistas, mas acho que, a esta altura do campeonato, uma polêmica a mais ou a menos não vai fazer muita diferença. Sendo assim, lanço aqui mais uma questão que certamente vai polarizar as opiniões: a discussão sobre a legitimidade ou não de se tomar cerveja no gargalo, direto da garrafa.
Nas últimas décadas, este se tornou um hábito muito difundido e, inclusive, vem sendo estimulado pela indústria cinematográfica e pelos meios de comunicação em geral. A todo momento vemos nos filmes, séries, comerciais e telejornais, vários personagens, e também ministros, deputados, senadores, policiais, bandidos, milicianos e até mesmo cidadãos de bem, todos tomando a sua cervejinha pelo gargalo, dispensando o uso do copo. Como todo mundo sabe, ou deveria saber, a cerveja é uma bebida espumante e por isso deve ser despejada num copo, de modo que sua espuma também seja alvo da degustação dos cervejistas.

Até agora não sabemos qual é o posicionamento dos filhos do presidente sobre essa questão crucial pra o futuro do país e da humanidade, mas achamos conveniente que as autoridades sanitárias lancem uma campanha do tipo "O Ministério da Saúde adverte: beber cerveja pelo gargalo faz mal à cerveja".
Pronto, foi dado o pontapé inicial. Agora é só acompanhar, nas redes sociais, a briga de foice que vai acontecer entre os gargalistas e os colarinhistas.

Texto de Reinaldo Figueiredo, na Folha de São Paulo

Poesia entre pedras, dentro de um poço

Poesia entre pedras, dentro de um poço

Livro do israelense Yehuda Amichai traz a ironia da separação política e pessoal



O poema é curto, está na primeira página do livro e produz (pelo menos para mim) um impacto instantâneo. Aqui vai.
"Esquecer alguém é como/ esquecer de apagar a luz no quintal/ e deixá-la acesa também de dia:/ mas isso também é lembrar/ pela luz."
Foi escrito pelo israelense Yehuda Amichai (1924-2000), de quem a editora Bazar do Tempo publica uma coletânea selecionada e traduzida por Moacir Amâncio.
A ideia da casa —casa abandonada, casa que deixamos provisoriamente, casa que alguém deixou de ter, casa que alguém constrói— volta e meia aparece nos versos desse autor, que nasceu na Alemanha, mas migrou com a família para a Palestina em 1935.
Às vezes, a imagem serve para sugerir a separação dos amantes. "'Tranquei a porta', disseste,/é uma frase importante, toda fatalidade./ As palavras ainda estão na minha lembrança,/ mas esqueci de que lado da porta elas foram pronunciadas,/ de dentro ou de fora."
Fica a dúvida. Será que se trata de alguém que, como no poema anterior, vai embora de seu país junto com a mulher ou a família? Ou de alguém que, rompido com a mulher, fica do lado de fora da casa, enquanto ela pronuncia a frase que traz "toda fatalidade"?
Separações fazem Yehuda Amichai criar metáforas surpreendentes, irônicas, resignadas. "Eles nos separaram,/ um do outro. Para mim eles são engenheiros./ Pena. Éramos uma boa invenção/ de amar: um avião feito de homem e mulher,/ asas e tudo:/ nós nos elevamos um pouco do chão,/ voamos um pouco."
Mas a tal "porta trancada" tem outro significado num país como Israel. Ir embora de casa foi também a experiência de muitos palestinos, que --como os antigos judeus expulsos da Espanha-- guardam ainda a chave da propriedade que tiveram de abandonar no dia da Nakba, a "catástrofe" de maio de 1948.
Amichai lutou na Guerra da Independência daquele ano, defendendo seu país recém-criado contra a reação árabe. Sua poesia guarda, entretanto, a ambiguidade da situação. "De três ou quatro numa sala/ sempre um se coloca à janela./ Levado a ver o mal entre os espinhos/ e os incêndios na colina."
O poeta continua: "pessoas que saíram inteiras/ são devolvidas de noite às suas casas feito moedas de troco". É a guerra, mas também a rotina do trabalho. Não apenas de israelenses, mas também dos palestinos.
Pois o homem na janela ouve as palavras dos outros na sala, atrás dele, e também, diante dele, "as vozes que vagam sem mochila,/ corações sem um farnel, profecias sem água/ e grandes pedras devolvidas/ que permaneceram fechadas como cartas sem/ endereço, sem ninguém para recebê-las".
Em outro poema, Amichai se refere a Israel como "um país pacote:/ ele está bem amarrado e tudo o mais, amarrado fortemente,/ os nós às vezes doem".
Às vezes? Podemos pensar em outra de suas interpenetrações do comentário político e da vida pessoal: "se sou como um ouriço, sou um ouriço contrário,/ os espinhos crescem para dentro e fazem doer".
O próprio "avião" a que Amichai comparou seu relacionamento amoroso poderia ser reinterpretado como uma reflexão a respeito da utopia socialista que tinha inspirado os pioneiros israelenses. "Éramos uma boa invenção (...) voamos um pouco."
Muros e clausuras estão por toda parte. "Num telhado da Cidade Velha,/ a roupa no varal ilumina-se à última luz do dia:/ o lençol branco de uma mulher inimiga,/ a toalha de um homem inimigo/ para enxugar o suor do seu rosto./ No céu da Cidade Velha/ há uma pipa./ No fim da linha/ há um menino,/ que eu não vejo/ por causa da muralha."
Esse "fechamento" é o do seu país, e também o dos que se refugiaram ao sair dele. Mas, sem dúvida, há o fechamento de cada um dentro de si mesmo, em que "cada pedra" —na religião judaica, colocam-se pedras em cima dos túmulos— "é uma carta sem endereço".
Amichai se lembra de uma criança alemã, morta nos campos nazistas. É como a mala, diz ele, que continua girando na esteira do aeroporto, sem ninguém que a reclame. O filho do poeta, convocado para a guerra, encosta a cabeça no canto da janela do ônibus, "como os selos nas cartas".
O gosto da cola do correio, diz outro poema, "amarga a minha língua". E as pessoas, em "Montanhas de Jerusalém", "não são senão depósitos de água dispersos por tudo,/ como poços e buracos e as fontes das profundezas".
A comunicação é impossível, mas se faz mesmo assim.

Texto de Marcelo Coelho, na Folha de São Paulo