quinta-feira, 29 de novembro de 2018

Moro num país tropical

A torrente de acusações judiciais que, de repente, voltou a cair sobre Lula, Dilma Rousseff e até Fernando Haddad —em contraste com opresente antecipado de libertação do delator Antonio Palocci— até agora não teve êxito algum em sua função extrajudicial. Não fez parecer que a continuidade de acusações nega a finalidade, nas anteriores à eleição, de impedir a candidatura de Lula e sua previsível vitória.
O próprio beneficiário do efeito extrajudicial, Sergio Moro, facilitou o fracasso. Ao renegar a afirmação de que jamais se tornaria político, e incorporar-se ao governo que ajudou a eleger, mais do que desmoralizou o seu passado de juiz —como disse que aconteceria, se passasse à política. Tornou mais desprezível a imagem do futuro governo e do país exposta a cada dia pela imprensa mundial.
Voltamos a ser um país com algumas originalidades musicais, carnavalescas, geográficas, mas um país atrasado de um povo atrasado. E não há o que responder.
Onde, no mundo não atrasado, um juiz faria dezenas de conduções coercitivas ilegais, prisões como coação ilegal a depoentes, gravações ilegais de acusados, parentes e advogados, divulgação ilegal dessas gravações, excesso ilegal de duração de prisões, e sua impunidade permanecesse acobertada por conivência ou medo das instâncias judiciais superiores? Condutas próprias de ditadura, mas em regime de Constituição democrática.
No mundo não atrasado, inexiste o país onde um juiz pusesse na cadeia o líder da disputa eleitoral e provável futuro presidente, e deixasse a magistratura para ser ministro do eleito por ausência do favorito.
O juiz italiano da Mãos Limpas tornou-se político, mas sua decisão se deu um ano e meio depois de deixar a magistratura. Moro repôs o Brasil na liderança do chamado subdesenvolvimento tropical, condição em que a Justiça se iguala à moradia, à saúde, à educação, e outros bens de luxo.
A corrupção financeira tem equivalentes em outras formas de corrupção. A corrupção política, com transação de cargos ou postos no Legislativo, por exemplo. A corrupção sexual, a corrupção do poder das leis por interesses políticos ou materiais. Combater uma das formas não gera a inocência automática em outras.
A maneira mesma de combater a corrupção pode ser corrupção imaterial. Ao falar dessa variedade de antiética e imoralidades, no Brasil fala-se até do Supremo Tribunal Federal. A transação do seu presidente, Dias Toffoli, e do ministro Luiz Fux com Michel Temer, para um aumento em que os primeiros e maiores beneficiários são os ministros do STF, ajusta-se bem a diversos itens daquela variedade.
Sergio Moro é dado como futura nomeação de Bolsonaro para o Supremo. Muito compreensível.

Texto de Janio de Freitas, na Folha de São Paulo

segunda-feira, 26 de novembro de 2018

Destino de Lula: abandono e solidão

Lula está politicamente abandonado. O abandono político de Lula, principalmente por parte do PT, se prenunciava quando o partido não fez uma campanha de mobilização nem para se contrapor à sua condenação, nem para se contrapor à sua prisão e nem para exigir a sua libertação. Ocorreram atos isolados aqui e acolá, é verdade. Mas não atos que se inscrevessem no contexto de campanhas organizadas e sistemáticas. O processo da campanha eleitoral impôs a Lula a consumação do abandono político, sacramentado no pós-eleições. O seu depoimento à juíza Gabriela Hardt simbolizou o abandono político efetivo do ex-presidente: nenhuma mobilização, nenhum ato de apoio, nenhum protesto nas proximidades do tribunal. O que se viu no depoimento foi um Lula envelhecido, triste e cansado, acompanhado apelas pelos advogados que até agora não obtiveram nenhuma vitória jurídica.

O que era de se esperar é que, com o fim da campanha eleitoral, o PT já tivesse uma campanha planejada de mobilização pela liberdade de Lula. Mas as suspeitas que não se veria nada disso se confirmaram. Muitos petistas, perguntados acerca da situação de Lula, respondem que "não há o que fazer". Este conformismo derrotista é a confirmação do abandono.
Quando foi adotada a tática de levar a candidatura Lula até as últimas consequências esperava-se que as elites e o Judiciário pagassem um preço alto pela exclusão do líder das pesquisas, do político mais popular da história do Brasil, junto com Getúlio Vargas. Mas para que este preço fosse pago, evidentemente, alguém haveria de cobrá-lo. O preço seria uma parcela significativa da sociedade mobilizada para exigir a candidatura Lula.
Dificilmente bases sociais se mobilizam sozinhas. É preciso direção, comando e coragem para que haja mobilizações. Não havia nada disso quando Lula foi interditado, confirmando que o PT, que havia perdido as ruas desde 2013, mas, principalmente, durante o processo de impeachment que levou ao golpe, não foi capaz de recuperá-las nem para defender seu maior líder - um líder de milhões de brasileiros.
Qual foi o preço pago pelas elites e pelo Judiciário pelo encarceramento e pela exclusão de Lula das eleições? Nenhum. Ficaram no lucro com a vitória de Bolsonaro, com principal algoz de Lula premiado com o Ministério da Justiça e com um criminoso e escandaloso aumento de 16,38% nos salários dos juízes. Mas como as esquerdas vivem de ilusões, anunciando vitórias que nunca vêm e que, ao fim e ao cabo das coisas se traduzem em derrotas, agora já vaticinam o fracasso do governo Bolsonaro à espera de apanhar o fruto sem plantar a árvore, para lembrar uma frase de Sérgio Buarque de Holanda.
No seu abandono, o que Lula tem pela frente é a perspectiva de novas condenações. O ambiente político adverso com a vitória de Bolsonaro, a pressão de generais que não querem Lula livre e o alinhamento das altas Cortes do Judiciário com os militares reforçam ainda mais a perspectiva de novas condenações e de alguns longos anos na cadeia.
Na medida em que o tempo passa e que nada de excepcional acontece em torno de Lula e de sua prisão (a não ser novas condenações), a ideia de Lula preso vai sendo naturalizada não só pelos petistas, mas pela consciência democrática em geral. A passividade é uma forma de aceitação, é uma memória triste e impotente do que poderia ser diferente mas não foi. A passividade é também uma forma de esquecimento. No caso, do esquecimento de que Lula está preso. O incômodo dessa lembrança só virá às mentes pelas notícias negativas das mídias.
O abandono e o esquecimento de Lula o retirarão também da memória coletiva e ele será lembrado como uma coisa boa para os muitos pobres e uma coisa ruim para os mais ricos. Mas ele será cada vez mais uma lembrança que vai empalidecendo. Na medida em que as pessoas precisam viver e continuar a vida, as suas expectativas se deslocam para novos líderes, para novos embates ou para novas frustrações.
Com Lula abandonado e esquecido na prisão, a sua força mítica tende a se enfraquecer. Aqueles que querem que essa força se enfraqueça ou morra tenderão, ao máximo, fazer verossímeis as acusações e aqueles que gostariam que ela continuasse viva não têm força e nem coragem para fazê-la viver. O que se verá, se nada for feito, é a desencantadora consumação da força extraordinária de um autêntico líder do povo. E o povo, que é o verdadeiro abandonado, não terá essa força mítica como conforto de suas angústias, como energia ativa de suas lutas e como referência de combate. O enfraquecimento da figura mítica de Lula se expressará como enfraquecimento da própria energia combativa do povo, pois este acreditará que nada vale a pena já que o seu destino será a pobreza e a derrota.
Lula sempre foi muito ativo politicamente, alegre, afetivo, comunicativo, brincalhão. Em que pese ter muitas visitas na prisão, parece óbvio que o tolhimento de sua liberdade faz com que lhe pese a solidão. Essa pode ser ainda maior porque o seu encarceramento o impede de viver essa essência, essa natureza afetiva, expansiva e comunicativa. Não se trata apenas da solidão de passar horas e dias sozinho, mas da solidão da falta de perspectivas de exercitar a sua liberdade com plenitude. Trata-se da solidão diante de um país que lhe negou a possibilidade de ele doar-lhe o que tem de melhor. Trata-se da solidão de ver envelhecer-se mergulhado no abismo de quatro paredes.
Certamente, Lula já terá refletido muito acerca do caráter efêmero do poder e acerca da precariedade da vida humana. Até ontem ele era um dos presidentes mais festejados do mundo e, hoje, vê-se na aterradora condição de um encarcerado. A situação de Lula é um retrato vívido da precariedade e da fragilidade das coisas humanas. A situação de Lula é uma lição dolorida que todos os políticos deveriam aprender: o poder não pode ser arrogante, mas deve ser exercido com prudência, humildade e humanidade. Somente este tipo de poder merece ser glorificado e somente os líderes que assim o exercem se tornam heróis cuja, sua memória, sua lembrança e sua invocação são como uma setas que atravessam os tempos.
Somente nós, mas principalmente o PT, os movimentos sociais, as esquerdas e os líderes políticos que têm poder de convocação poderão atenuar a dor da solidão de Lula: mostrar, através de uma campanha organizada, em atos e mobilizações, que ele não está só. Dizer que "não há o que fazer" é enfiar um punhal na já dilacerada solidão de Lula. Mas, talvez, o destino de Lula seja o de confirmar, tristemente, uma afirmação de Schopenhauer: "A solidão é a  sorte de todos os espíritos excepcionais".

Texto de Aldo Fornazieri, no Jornal GGN

sexta-feira, 23 de novembro de 2018

Eterno

S. se interessa por um livro sobre a mesa. É a "Ascensão e Queda de Adão e Eva", de Stephen Greenblatt. A gravura de Albrecht Dürer do casal, na capa, chama a sua atenção. 
S. frequenta o culto pentecostal da cidade em que nasceu. É ali que namora, faz amigos e passa os domingos com a família. S. crê no que lhe diz o pastor, que Adão e Eva deram origem a todos os homens sobre a Terra. 
Quando lhe pergunto sobre a possibilidade de existir um ancestral comum ao homem e ao macaco, ela responde que conhece a teoria, mas que se guia pelo Evangelho e que a informação não consta dos versículos. 
Penso em presentear S. com um exemplar da obra de Greenblatt, e me pergunto se a moça se sentirá atraída pelo estudo das transformações sofridas por um mito que sobreviveu a Darwin, Newton e Galileu.
O que pensaria S. da presença de Noé no "Atrahasis" e em "Gilgamesh"? Que conclusões tiraria de Agostinho e Milton? Será que se ofenderia com o pterossauro de Twain e o humor demolidor de Voltaire? Ou, pelo contrário, descobriria um mundo outro, igualmente belo e respeitoso, mas diferente do que prega o pastor?
Tenho pensado muito nisso, num diálogo possível entre aquilo que me é caro e o novo cristianismo em ascensão no Brasil. Um cristianismo deveras monoteísta, que não admite sincretismos e enxerga o demo em Iemanjá.
Lutero e Calvino renegam até o politeísmo disfarçado dos santos católicos. Depois de 500 anos de Cristo, Oxalá e Tupã, não é tarefa fácil se acomodar à ortodoxia puritana.
Pragmático, o protestantismo celebra o progresso pessoal e conseguiu, nas últimas décadas, agir sobre o caos social, convertendo e organizando a vida dos que foram esquecidos pelo estado. 
O empenho evangélico ultrapassou a esfera religiosa, tornando-se uma força política. A última eleição não deixa dúvida, Deus se fez presente no palanque, pregando uma agenda conservadora, baseada na moral e nos bons costumes.
Os que preferem o risco ateu da ciência costumam tratar a fé como estupidez. Mas existe lógica na troca da liberdade da dúvida, pela certeza de um ente protetor.
Entre Eva e Lucy, S. escolhe Eva. A heroína do Gênesis enfrenta questões semelhantes às dela: amor, casamento, traição, responsabilidade, culpa, trabalho, doença e finitude. Lucy não, Lucy é puro acaso.
O romeno Mircea Eliade, grande estudioso das religiões, ensina que do paleolítico ao neolítico; dos megálitos à Cruz; de Marduk a Zeus; de Lao-Tsé a Confúcio; de Shiva a Buda; todas as crenças compartilham raízes comuns, sendo que as mais arcaicas sobrevivem ocultas em épocas posteriores.
A visão de Ezequiel, do vale coberto de esqueletos, é resquício da adoração dos ossos praticada nas cavernas. Os cultos ligados às plantas --como o da árvore do bem e do mal-- datam do início do período agrário, quando o homem dominou o milagre da morte e a ressurreição das sementes.
Por meio dos mitos, Eliade traça a genealogia da civilização indo-europeia. Lévi-Strauss faz algo parecido com os ameríndios em "Mitológicas".
Se esses autores se tornassem matéria obrigatória nas escolas, entenderíamos, desde cedo, que a história das ideias e das crenças religiosas se confunde com a da civilização, e não nos surpreenderíamos com o poder de Deus nas urnas.
Minha dúvida é se Eliade, Strauss e Greenblatt são considerados globalistas marxistas, traidores de Cristo e do Ocidente pelo futuro chanceler Ernesto Araújo. 
Se for esse o caso, aceito ser queimada na fogueira, com S. riscando o primeiro fósforo.

Fernanda Torres, na Folha de São Paulo

segunda-feira, 19 de novembro de 2018

O pecado do desespero

O desespero é um pecado. Deus disse que sua criação era boa. A ideia que a falta de esperança seja um pecado está no coração do hebraísmo antigo. 
Tanto o judaísmo quanto o cristianismo e o islamismo carregam essa intuição antiga de um povo de pastores como um diamante em chamas em seu coração.
A falta de esperança como pecado é um fato bem conhecido por nós. De certa forma, como acontece com todo pecador consciente de sua cela, o desespero pode tornar você mais forte: a esperança pode ser uma fraqueza, como nos ensina Pandora (ela é o pior dos males escondido por Zeus na caixa de Pandora, para castigar a húbris humana de querer ter o segredo do fogo).
Quando você não tem mais nenhuma esperança, você se encontra na condição de Antígona, assim descrita pela fortuna crítica quando pensa a “psicologia” dos heróis trágicos: a calma que nossa heroína encontra ao final da peça homônima de Sófocles (morto em 408 a.C.), ao aceitar que deve morrer porque descende de um útero incestuoso. Antígona era filha de Édipo com sua mãe Jocasta. 
A calma trágica pode ser uma força diante da inexorabilidade do mal no mundo.
No polo oposto, o rei Davi, nos seus belíssimos salmos, nos ensina que, mesmo ao atravessarmos o vale das sombras, Deus estará conosco, como nosso guia. Essa é a marca da esperança como uma das virtudes máximas no hebraísmo antigo (outra é a humildade). O desespero aqui peca contra a confiança no mundo. 
Todo pecado descreve uma encruzilhada. Nesse caso específico, a falta de esperança interrompe a circulação sanguínea do espírito, coagulando-o na escuridão. Não há como viver no mundo sem esperança, ensinam-nos nossos ancestrais hebreus.
Acaba de ser publicada no Brasil, pela editora É Realizações (que inunda o mercado de livros no país com a beleza das letras distantes da boçalidade contemporânea), a peça “Esse Paraíso da Tristeza”, do brasilianista Sébastien Lapaque. 
Ela é escrita a partir de trabalhos de Stefan Zweig (1881-1942) e Georges Bernanos (1888-1948). A obra e a vida de cada um serve de inspiração para o autor imaginar como teria sido a conversa entre os dois gigantes em Barbacena (MG), na casa de Bernanos, em 1942. A visita a Bernanos de fato se deu naquele ano, pouco antes de Stefan Zweig se matar aqui no Brasil, país onde ambos viviam.
Além de elementos históricos do momento (a guerra, o nazismo, o fascismo latente do governo Vargas), no centro do drama está a questão da esperança. O sofrimento de ambos com o nazismo e o fascismo (Bernanos fugira da França por se opor ao fascismo, Stefan Zweig era judeu —nada mais é preciso ser dito sobre seu desespero naquele momento) é conhecido pela fortuna crítica.
Bernanos é um autor a quem tenho dedicado atenção há algum tempo. O vínculo, em sua obra, entre um olhar agudo para o mal no mundo e a presença sobrenatural da graça como sutil detalhe em meio a esse mundo, é encantador. Como diz o personagem Bernanos num dado momento da peça, a fé é “como uma gota de esperança no oceano de dúvida”. Sua obra avança entre o nada e a graça. E, por isso mesmo, segue adentro do coração do hebraísmo antigo.
Como toda virtude, a esperança só brota na sua inteireza num terreno que lhe é hostil. Como estamos distantes aqui do farisaísmo moral que assola o mundo contemporâneo dos bonzinhos de coração e suas causas! Bernanos diz na peça que escreveu seis romances para tentar mostrar aos homens e às mulheres a presença do mal no mundo e em nós mesmos. Mas, como em toda boa teologia, o percurso pelo mal serve, antes de tudo, ao esclarecimento da visão da beleza e do bem que se esconde entre as trevas da realidade.
O Dostoiévski francês, como é chamado em seu país, era um homem que buscava a esperança como quem busca uma gota de oxigênio em meio ao vazio de ar. E aqui reencontramos a intuição do hebraísmo antigo: a esperança, assim como a coragem, são virtudes que se arrancam das pedras.
O hebraísmo antigo sabia que somente os pecadores verão a Deus. Nelson Rodrigues, que entendia profundamente da psicologia do pecador, traduziu essa máxima para “só os neuróticos verão a Deus”.
Se a humildade é a melhor resistência à estupidez e a coragem o melhor antídoto à mentira (temas também de Bernanos), a esperança é um trunfo contra o medo que nos assola todo dia, mesmo aqueles que se dizem felizes, belos e bons.

Texto de Luiz Felipe Pondé, na Folha de São Paulo