O veterinário veio em casa dar assistência ao Neguinho, o vira-lata de longos pelos cinzas que meus pais resgataram das ruas dez anos atrás. Na minha visita anterior, Neguinho já estava cheio de tumores e com dificuldade para se levantar sozinho, mas ainda andava, ia sozinho tomar sol em seu canto favorito no gramado, e vinha ficar sob a mesa onde sentávamos para jogar cartas e bater papo —de onde só levantava de novo com ajuda da técnica que meu pai desenvolveu sob medida para ele.
Mas desta vez, Neguinho não se levantava mais. Nem para fazer cocô ou xixi. Bebia água e comia algo se colocado em sua frente. O veterinário colheu sangue e deu o diagnóstico: insuficiência renal e hepática. Neguinho foi internado no dia seguinte para uma ultrassonografia que constatou tumores na bexiga e baço. Os médicos somente diziam que a situação era gravíssima. Quem sugeriu eutanásia fui eu.
Há que se saber dizer chega. A morte vem para todos que vivem —bactérias inclusive, mortas no processo de divisão celular que transforma uma em duas, assim como o teletransporte da ficção científica destrói um corpo aqui para recriá-lo lá longe. Se a vida é o processo de auto-organização de sistemas biológicos às custas de cadeia de transferência de energia e matéria, chamada "metabolismo", morrer é o processo de desorganização paulatina quando o metabolismo cessa, salvos casos de desintegração súbita por aniquilação da estrutura do corpo.
Vida é desequilíbrio auto-organizado e autossustentado, transmitido diretamente de células já vivas dos pais e mantido às custas da energia que circula pelo sangue. Morte é equilíbrio —e chegar a esse equilíbrio é todo um processo.
Com insuficiência renal e hepática mais atrofia muscular severa, Neguinho já estava morrendo. Deixá-lo terminar de morrer naturalmente, o que isenta cérebros humanos da sensação de culpa ao se tornarem agentes do equilíbrio final alheio, era arriscar deixá-lo morrer sozinho, e depois de muito mais sofrimento, o que para mim é egoísta e imoral quando desnecessário.
Meus pais concordaram e assinaram a autorização, enquanto eu pedi ao veterinário para eu acompanhá-lo e ficar com Neguinho durante o processo. Eu queria que isso tivesse acontecido em casa, para que meus pais pudessem tê-lo dado banho uma última vez, o que ele gostava, mas já era tarde.
Acalmei Neguinho fazendo-lhe carinho atrás das orelhas e sobre o focinho enquanto ele recebia uma dose elevada de propofol, meu nariz colado ao seu. Senti-lo relaxar com a anestesia foi um alívio. Com seus olhos já fechados, sem dor, e com minha mão em seu peito, senti quando o cloreto de potássio intravenoso parou seu coração.
Mas a morte é um processo, e ainda havia vida, mesmo que anestesiada, no cérebro dele, que ainda fez o cérebro respirar alguns minutos. Sem circulação, contudo, sangue oxigenado não chega mais ao tronco encefálico, e, conforme mais neurônios atingem o equilíbrio e param sua atividade, a respiração desacelera e enfraquece. São cada vez menos neurônios ainda capazes de organizar mais uma inspiração, até que ela para. E parou.
Pedi um minuto ao veterinário e continuei acariciando Neguinho até não achar mais possível ainda haver Neguinho em seu cérebro. Retirei seu colar, que minha mãe quis guardar, e agradeci aos veterinários pela gentileza de me deixar estar ali. Para mim, assistir Neguinho em sua morte e sobretudo presenciá-la foi minha forma de demonstrar respeito e reverência à sua vida.
Texto de Suzana Herculano-Houzel, na Folha de São Paulo.