quinta-feira, 23 de fevereiro de 2017

Façanhas de Temer predominam no noticiário


Desde a exclusão de Geddel Vieira Lima, não parou mais. O aperitivo da Odebrecht com 34 citações a Moreira Franco, e dezenas de outras, ainda sem contagem precisa, a Michel Temer. A aberração da escolha de Temer para suceder Teori Zavascki. A criação de um ministério para dar foro privilegiado a Moreira. O hacker de Marcela.
A censura de Temer à Folha e ao Globo. A derrota judicial do censor ameaçado de ver-se "jogado na lama". A identificação do indicado para o Supremo, Alexandre de Moraes, como plagiário. Os vetos e recusas de convidados por Temer para ministro da Justiça.
Mais de um mês de predomínio do noticiário pelas façanhas de Temer. Só mesmo chamando a polícia.
É o que foi feito. À falta de mais imaginação, a Polícia Federal sacou um "relatório parcial", logo "vazado" para imprensa e TV. Pronto, Lula voltou à proeminência do noticiário. Acompanhado, como convém, por Dilma Rousseff. E, de quebra, Aloizio Mercadante.
Ainda aquela história de que quiseram obstruir a Lava Jato, os dois primeiros com a nomeação de Lula para ministro da Casa Civil. Mercadante, por aconselhar calma a Delcídio Amaral, ainda tido, na ocasião, como pessoa séria.
Mas, de fato, não é "aquela história". É aquela fraude. No episódio, ilegal foi a conduta de Sergio Moro. Três vezes: ao desprezar o excedente de mais de duas horas entre o prazo de escuta telefônica, por ele mesmo fixado, e o telefonema gravado pela PF; ao divulgar, ele próprio, a gravação ilegal; e fazer o mesmo, sem razão para isso, com uma conversa entre Marisa Lula da Silva e um filho.
O decano pouco liberal do Supremo, Celso de Mello, mencionou na semana passada que foro privilegiado, por transferência de um processo para o Supremo, não interfere e muito menos interrompe o processo. Muda o nível de tramitação, não mais. Deveria ser verdade. Mas é só meia verdade. Porque no Supremo vale para alguns, como Temer e Moreira Franco. Para outros, não, como negado para Lula e, por extensão, para Dilma. Feito de Gilmar Mendes, ministro à direita de Celso de Mello.
Os cursos de Direito precisam acabar com o ensino de leis e de como as empregar. O que vale hoje, está visto, são os truques, capazes até de tirar um presidente da República que as leis não puniram.
Mais um truque está em gestação, agora entre o presidente da Câmara, Rodrigo Maia, e o ministro Luiz Fux, do Supremo.
A lei exige que seja verificada a autenticidade das assinaturas do "projeto popular" proposto pela Lava Jato – aquele que propõe até a aceitação de provas ilícitas. A Câmara não tem como verificar dois milhões de autenticidades. Os dois poderosos combinam a solução: apenas serão lidos por funcionários, sem exame algum, os nomes, endereços e números declarados de títulos eleitorais.
Até que comece a leitura, a proposta da Lava Jato é um AI-5 envergonhado. Da leitura em diante, seguirá como fraude. A lei será burlada e ao resultado da burla será dada falsa validade legal.
Está feita a primeira reforma dos novos tempos: direito é truque.


Texto de Jânio de Freitas,  na Folha de São Paulo.

domingo, 19 de fevereiro de 2017

Escritores na guerra síria

A guerra na Síria completa seis anos em março. O que foi àquela época descrito pelo regime como protestos pontuais e pela oposição como uma revolução é hoje um longo e imparável confronto.
Como todos os conflitos, este carece de sentido. Mas escritores sírios se esforçam desde já para entender e explicar suas experiências, que serão o grande assunto de sua ficção durante as próximas décadas.
Foi o que aconteceu no vizinho Líbano, cujos pensadores se voltaram ao confronto civil de entre os anos de 1975 e 1990, produzindo os clássicos de sua literatura.
A partir dessa constatação, a revista literária "Banipal", publicada em Londres, dedicou seu número mais recente a 12 autores sírios, traduzindo trechos de seus trabalhos.
São pequenos fragmentos, como as pedras do minarete da antiga mesquita de Aleppo, espalhadas pela esplanada depois de um bombardeio. Mas são registros importantes de como artistas enxergam a guerra enquanto ela ainda é travada.
Hala Mohammad descreve, no poema "Empreste-me a janela, estranho", a experiência de deixar o lar -um drama vivido por outros milhões de sírios, incluindo aqueles que se refugiaram no Brasil.
Ela conta que, após os embates, ninguém voltou a suas casas. Nem mesmo as casas retornaram a si mesmas.
"Os coelhos nos campos, embaixo da erva incinerada pelo napalm, pelo gás de cloro e sarin, fecham seus olhos diante das câmeras, não querendo ser fotografados", escreve. "As crianças morreram. Para quem, então, contar histórias?"
Fawaz Kaderi, por sua vez, narra um cortejo fúnebre. "Essa criança, carregada em ombros, observa a todos de uma rachadura na vida", escreve.
"Uma mulher balança sua cabeça de maneira violenta. Levante, meu menino. O garoto ainda está inerte. O universo tremeu e o assassino sorriu."
Esses pequenos trechos, incluindo também um texto do premiado Khaled Khalifa (autor de "Em Elogio ao Ódio"), são vozes distantes, sem tradução extensiva ao inglês e provavelmente inéditas em português por um longuíssimo tempo.
Os relatos desses 12 autores ainda não serão, pois, lidos ao lado das reportagens jornalísticas e dos discursos políticos.
Mas, uma vez consolidados pelos anos, seus livros vão solidificar o horror de mais um conflito que não precisava ter sido travado.
Essa parece ser, de uma maneira mais ampla, a missão entregue pelo escritor Nouri al-Jarrah a todos os refugiados sírios no final de seu poema "Um Barco para Lesbos":
"Zarpem em todas as direções e, depois da tempestade e do dano, ergam-se em todas as línguas e em todos os livros". "Apareçam em todos os territórios e levantem-se como o raio nas árvores."


Texto de Diogo Bercito, na Folha de São Paulo

quinta-feira, 16 de fevereiro de 2017

A aula do professor Padilha

Na campanha pelo impeachment, Michel Temer prometeu montar um ministério de notáveis. Ele nomearia uma equipe de auxiliares reconhecidos pelo talento, e não pela ficha corrida ou pelo apoio de deputados e senadores.
O balão de ensaio murchou rapidamente. Ao tomar posse, o presidente imitou os antecessores e loteou a Esplanada em troca de votos no Congresso. Prevaleceu o velho "toma lá, dá cá", no qual ele se especializou como poderoso chefão do PMDB.
Na semana passada, o ministro Eliseu Padilha relembrou o truque em tom de galhofa. Em palestra para funcionários da Caixa Econômica Federal, ele narrou os bastidores da escolha do ministro da Saúde, Ricardo Barros. A fala foi transcrita pelo jornal "O Estado de S. Paulo" e vale como uma aula de fisiologismo.
"Lembram que quando começou a montagem do governo diziam: 'Só queremos nomear ministros que são distinguidos na sua profissão em todo o Brasil, os chamados notáveis'? Aí nós ensaiamos a conversa de convidar um médico famoso em São Paulo, até se propagou que ele ia ser ministro da Saúde", contou.
Padilha se referia ao respeitado cirurgião Raul Cutait, livre-docente da Faculdade de Medicina da USP. "Aí nós fomos conversar com o PP. 'O Ministério da Saúde é de vocês, mas gostaríamos de ter um ministro da Saúde assim'", prosseguiu.
Animado com o interesse da plateia, o peemedebista narrou o desfecho do diálogo: "Diz para o presidente que nosso notável é o deputado Ricardo Barros". "Vocês garantem todos os nomes do partido em todas as votações?". "Garantimos". "Então o Ricardo será o notável".
Há nove meses no cargo, Barros se notabilizou por dizer besteiras e defender os interesses dos planos de saúde. Apesar do desempenho pífio, tem recebido boas notas do professor Padilha. O PP também parece satisfeito. Desde que assumiu o ministério, não deixou de cumprir um dever de casa dado pelo Planalto.


Texto de Bernardo Mello Franco, na Folha de São Paulo

O ignorante não sabe que o é

Lena Dunham é a autora e a protagonista de "Girls", o seriado da HBO que estreia sua última temporada nesta semana. "Girls" é "Sex in the City", mas para gente grande –o que é irônico, porque o pessoal de "Girls" é mais jovem do que o pessoal de "Sex in the City".
Enfim, Lena Dunham, pela boca de sua personagem Hannah, reconheceu: "Tenho forte opinião sobre tudo. Mesmo em tópicos sobre os quais sei pouco a respeito".
Talvez você não goste de Lena Dunham e pule de alegria porque ela finalmente admitiu o que você sempre pensou dela (ou seja, que ela é "metida" mesmo). Pois bem, não pule. O que Dunham disse é apenas uma regra universal e incontestável: ao tomar posição sobre qualquer tópico, quanto menos soubermos, tanto mais mostraremos e sentiremos uma certeza absoluta. E quanto maior nossa incompetência, tanto maior será nossa convicção na hora de agir.
Em 1995, o sr. McArthur Wheeler assaltou dois bancos depois de molhar o rosto com suco de limão, absolutamente convencido de que o suco funcionaria como tinta invisível e não deixaria seu rosto aparecer nas gravações das câmeras de segurança. Todos podemos ter ideias erradas, mas só os grandes incompetentes se avaliam como extremamente competentes.
O fenômeno foi comprovado em 1999 por David Dunning e Justin Kruger, psicólogos da universidade Cornell, numa série de experiências com a prática médica, o jogo de xadrez, a capacidade de dirigir um carro etc. Em cada caso, as pessoas incompetentes não reconheciam o tamanho de sua incompetência –só começavam a reconhecer sua incompetência efetiva se e quando elas treinassem e se instruíssem para tornar-se competentes.
Ou seja, quanto mais a gente é ignorante e incompetente, mais a gente tem certezas radicais e passionais. Inversamente, quem se afasta de sua incompetência (informando-se ou formando-se) torna-se mais humilde e mais disposto a duvidar de si.
Em suma, ignorância e incompetência produzem uma ilusão interna de saber e competência. Inversamente, saber e competência produzem uma certa auto-desvalorização do sujeito, que passa a duvidar de si.
É possível pensar que a certeza passional seja uma maneira de compensar (e esconder) nossa própria ignorância ou incompetência.
Mas, de qualquer forma, a explicação é intuitiva: quanto menos eu souber (do que for: de motor de carro, de política econômica, de teatro, de amor etc.), tanto menos saberei medir o que não sei. Inversamente, quem sabe mede facilmente que só sabe uma pequena parte do que gostaria de saber.
Sócrates dizia que ele só sabia que nada sabia. Por isso mesmo, o resultado da pesquisa pareceu tão esperado que Dunning e Kruger, em 2000, ganharam o prêmio Ig Nobel de irrelevância. Mas Dunning continuou e, em 2005, publicou um livro, "Self-Insight", cujas implicações são úteis.
Em época de grandes paixões e conflitos –ou, como se diz, de polarizações– mundo afora, vale a pena lembrar que a certeza (ainda mais quando for passional) é proporcional à ignorância e à incompetência.
Aplique isso ao campo da moral, da política e da religião: a ignorância é a grande mãe de quase qualquer extremismo.
O psicanalista Jacques Lacan disse um dia que só os teólogos conseguiam ser verdadeiros ateus: o saber e a competência nos afastam da certeza.
Enfim, alguém poderia se preocupar especificamente com uma consequência disso tudo: se a ignorância e a incompetência nos oferecem certezas (falsas, mas tanto faz), será que isso não significa que os ignorantes e os incompetentes são os mais aptos a agir?
Será que o excesso de competência e de saber nos levariam a dúvidas sofridas e, portanto, à incapacidade de agir? Por exemplo, deve ser fácil decidir a política dos EUA a partir do noticiário da televisão, mas se você lesse e estudasse todos os relatórios preparados pelas diferentes fontes que informam o presidente, então a tomada de decisão se tornaria complicada, hesitante.
Obviamente, essa não é uma razão para se render à facilidade da incompetência. Tampouco é uma razão para não agir. Para agir, é preciso aceitar que a qualidade de um ato apareça nas dúvidas e não na certeza de quem age, porque, como já dizia Touchstone, o bobo de "As You Like it" (mais de 400 anos antes de Dunning e Kruger), "o idiota pensa que é sábio, enquanto o sábio é aquele que sabe de ser idiota".


Texto de Contardo Calligaris, na Folha de São Paulo.

Flor do jardim da responsabilidade fiscal, Hartung lançou luz sobre as outras

Somando-se todos os seus mandatos, Paulo Hartung governou o Espírito Santo por dez anos e trabalhou duro no seu saneamento financeiro. Encarnou o respeito à Lei da Responsabilidade Fiscal e aquilo que chama de "o caminho capixaba". O motim da Polícia Militar do Estado mostra a necessidade da busca de algo impossível, uma lei da responsabilidade social. O prometido paraíso fiscal levou o Espírito Santo a viver dias de inferno social.
Enfrentando o motim da PM, o governo de Hartung seguiu um modelo comum aos governadores que esticam a corda e, quando despertam, pedem socorro às Forças Armadas. Em 2012, num motim muito parecido com o capixaba, o governador Jacques Wagner chamou o Exército. Seis governadores já chamaram a tropa e 22 Unidades da Federação já expulsaram policiais militares e bombeiros.
Parecem grandes defensores da lei e da ordem, mas é tudo teatro. Entre 2011 e agosto passado, o Congresso votou duas anistias para policiais e bombeiros que se meteram em pelo menos 33 greves e motins. Nas duas, o PMDB de Temer e Hartung apoiou as iniciativas (curiosidade: um militar que sofreu uma sanção disciplinar enquanto sua tropa estava mobilizada para conter um motim continua com a ficha suja. O PM foi anistiado).
Noutro motim, o dos bombeiros do Rio, o governador Sérgio Cabral foi o paladino da lei e da ordem. Hoje ele está em Bangu. Pezão, seu vice e herdeiro, também chamou o Exército, depois de detonar a responsabilidade fiscal, a social e, quem sabe, a penal.
Hartung sustenta que não atende as reivindicações da PM pois não tem dinheiro. Algum dia se saberá quanto custou a mobilização da tropa federal de 3.000 homens. A desordem que acompanhou o motim custou dezenas vidas e cerca de R$ 500 milhões à economia. Esse aspecto fiscalista das desordens não é o único.
Nesses motins e na forma como os governos estaduais reagem, há uma irresponsabilidade social, impossível de ser legislada, mas possível de ser percebida. Os governadores não se previnem e, quando o caldo entorna, chamam o Exército. Quando tudo volta ao normal, deixam a anistia passar no escurinho do Congresso.
A doce figura de Milton Campos (1900-1972) governava Minas Gerais quando estourou uma greve provocada por salários atrasados e um de seus secretários anunciou que mandaria um trem com soldados para a área.
"Não seria melhor mandar o trem pagador?", perguntou o governador. Seria um exemplo de tibieza, mas esse adjetivo jamais poderá ser associado ao general Ernesto Geisel. Em 1975, ele enfrentava uma greve de fome de presos políticos por melhores situações carcerárias e dois dos seus generais cuspiam fogo. (Entre os presos estavam dois condenados à prisão perpétua, três sequestradores e um dos terroristas que mataram um marinheiro inglês cujo navio visitava o Rio de Janeiro.) Geisel estudou a situação e informou: "Ceder a uma greve é duro, mas eu prefiro ceder".
Se fosse possível redigir uma lei da responsabilidade social, os governantes seriam punidos quando criassem situações caóticas. Em nome da responsabilidade fiscal, Hartung acha que faz o certo, assim como Michel Temer acredita que deve reformar a Previdência e a legislação trabalhista de acordo com as tabelas de seus sábios. Planilha de excel qualquer um faz. Administrar uma sociedade é bem outra coisa.


Texto de Elio Gaspari, na Folha de São Paulo

Persistência é mais importante do que inteligência

"Por que a capacidade de trabalhar duro não é considerada um talento natural?"
A pergunta é feita por Garry Kasparov, um dos maiores jogadores de xadrez de todos os tempos, em sua biografia, publicada há uma década.
No livro, o enxadrista conta que, quando se tornou o mais jovem campeão mundial do jogo, aos 22 anos, em 1985, passou a ser questionado frequentemente sobre o segredo de seu sucesso. Rapidamente percebeu que suas respostas decepcionavam.
Isso acontecia, por exemplo, quando ele dizia que sua memória era boa, mas não exatamente fotográfica.
E o talento inato para o xadrez? Segundo Kasparov, seu pai percebeu muito cedo que ele tinha jeito para o jogo, mas que essa característica só se transformou em uma super-habilidade porque sua mãe o ensinou a estudar e praticar com afinco.
A capacidade de perseverar descrita pelo enxadrista pode ter menos glamour do que a inteligência, mas tem aparecido com frequência crescente nas pesquisas sobre educação.
Estudiosos do tema, como a psicóloga americana Angela Duckworth, da Universidade da Pensilvânia, têm afirmado que a determinação é crucial para a aprendizagem.
Em um de seus muitos experimentos detalhados sobre o assunto, Duckworth e Martin Seligman concluíram que a autodisciplina era um indicador duas vezes mais forte do que o QI (coeficiente de inteligência) para explicar as diferenças entre as notas de alunos dos EUA no fim do ensino fundamental.
A contundência de descobertas desse tipo fez a preocupação sobre como ajudar crianças e jovens a desenvolver habilidades como a persistência ultrapassar os muros da academia e chegar aos formuladores de políticas educacionais.
É um debate tanto instigante como complexo.
A crença na inteligência como principal explicação para o sucesso escolar, profissional e pessoal prevaleceu por décadas. Isso talvez se explique por que medir atributos como a capacidade de identificar padrões e fazer contas é mais fácil do que avaliar a tal habilidade para trabalhar duro descrita por Kasparov.
Ser dedicado pode significar estudar três horas por dia para um aluno e seis para outro. Quanta perseverança é necessária para melhorar a aprendizagem?
Experiências como a de alguns países asiáticos mostram que o excesso de disciplina pode acabar sendo prejudicial à saúde, ainda que garanta resultados brilhantes em testes de aprendizagem. Como atingir o equilíbrio?
A lista das chamadas habilidades socioemocionais ou competências do século 21 mencionadas como importantes é longa. Dedicação, autocontrole, extroversão, capacidade de trabalhar em grupo e de sentir empatia são apenas algumas delas. É viável trabalhar todas na escola? Como?
Estudiosos reconhecem a necessidade de mais pesquisas para responder a essas perguntas.
A falta de respostas mais conclusivas não invalida, porém, as tentativas de reformular currículos com base no que já é conhecido. As experiências nessa direção têm servido como insumo para avaliar as iniciativas de maior e menor êxito.
É, portanto, alentador o fato de que o governo brasileiro pretenda incluir as competências socioemocionais na Base Nacional Comum Curricular, como revelou o jornalista Paulo Saldaña em reportagem sobre o assunto.
A divulgação do documento é esperada, com atraso, para o próximo mês.
Embora seja o ponto de partida, a base precisará apresentar diretrizes claras, fundamentadas nas melhores experiências nacionais e internacionais. Só assim conseguirá guiar as redes na formulação de currículos capazes de melhorar o sofrível desempenho dos estudantes brasileiros.


Texto de Érica Fraga, na Folha de São Paulo

segunda-feira, 13 de fevereiro de 2017

A censura do doutor Moro

Em novembro, o acusado Eduardo Cunha fez 41 perguntas a Michel Temer, sua testemunha de defesa nos processos de Curitiba. O juiz Sergio Moro censurou metade do questionário. Afirmou que oito indagações não tinham "pertinência" e outras 13 eram "inapropriadas".
Cunha e Temer são velhos aliados, e as perguntas vetadas por Moro forneciam um bom roteiro para a Lava Jato. Numa delas, o correntista suíço queria saber: "O sr. José Yunes recebeu alguma contribuição de campanha para alguma eleição de vossa excelência ou do PMDB?"
Em dezembro, Yunes foi acusado por um delator da Odebrecht de receber dinheiro em espécie para Temer. Ele se disse indignado e deixou o cargo de assessor do presidente.
Nesta sexta (10), Moro recusou um pedido para soltar Cunha. Na decisão, voltou a reclamar das perguntas a Temer. Disse que tinham como objetivo "constranger o exmo. sr. presidente da República e provavelmente buscavam com isso provocar alguma espécie de intervenção indevida da parte dele". Faltou explicar que tipo de intervenção estaria ao alcance presidencial.
De acordo com Moro, Cunha recorre a "extorsão, ameaça e intimidações" para tentar escapar da lei. Os métodos do ex-deputado são conhecidos, mas o juiz deveria parecer mais interessado no que ele tem a revelar. A tarefa de evitar constrangimentos a Temer pode ser deixada para os advogados do presidente.


Texto de Bernardo Mello Franco, na Folha de São Paulo. Destaques do blogueiro.

Quando vemos uma virtude, devemos silenciar em reverência a ela

O que é uma virtude? Eis uma das perguntas mais difíceis de responder. Não há um consenso evidente. Em nossa época, nunca se falou tão facilmente de ética, como se esta fosse algum método que se consegue ensinar num workshop motivacional. Tampouco, a ética se deixa notar tão facilmente entre pessoas religiosas, ciosas de sua frequentação ao templo, aliás, como o próprio Cristo ensinou. Amontoam-se livros sobre justiça social, amor ao próximo, igualdade, Cristo, escritos por canalhas de todos os tipos. Que Deus nos proteja da bondade dos bons.
Não, virtudes estão entre as coisas mais raras do mundo. Quando vemos uma, devemos silenciar como forma de reverência. Toda virtude é silenciosa e discreta, se seguirmos o pensamento de autores cristãos católicos jansenistas, aqueles cristãos franceses do século 17, muito próximos dos calvinistas, que contavam entre os seus mais famosos gente como o filósofo Pascal e o dramaturgo Racine. Nunca somos capazes de atestar a presença de uma virtude em nós mesmos, apenas o outro pode fazê-lo, porque a vaidade, mãe de todos os pecados e vícios, está sempre atenta para confundir nosso próprio coração.
Entre os jansenistas que se dedicaram especificamente à falsidade das virtudes demonstradas, está o jurista Jacques Esprit (1611-1677). Para Esprit, a sociedade se sustenta na pretensão das virtudes em nós e nos outros. Romper com esse acordo tácito sobre a falsidade das virtudes é declarar guerra ao contrato social baseado na mentira moral, base da vida pública.
Para Aristóteles (385 a.C.-323 a.C.), a ética é uma ciência prática vivida na contingência, isto é, não há uma definição "matemática da virtude". Ela é uma espécie de gradiente que se move entre vícios opostos. Por exemplo, a generosidade é uma "média" entre você estourar tudo que tem dando aos outros, colocando sua vida e dos seus em risco, e ser simplesmente mesquinho.
Já Adam Smith (1723-1790), sociólogo e filósofo da moral britânico, mais conhecido pela sua reflexão sobre a riqueza e a sociedade comercial, se preocupava muito com os danos morais do enriquecimento. Mas, ainda assim, reconhecia como a melhoria material do mundo poderia, nalguma medida, ampliar a possibilidade da prática da generosidade, uma vez que as pessoas se sentiriam mais seguras para doar algo sem medo de elas mesmas virem a ficar pobres. O paradoxo do capitalismo, sistema movido a ganância, era esse mesmo: a ganância privada poderia gerar generosidade pública em alguma medida.
E aí chegamos a uma questão de fato séria e que sempre nos atormenta: pode-se comprar uma virtude? A riqueza garante a generosidade? As duas são a mesma coisa?
Não, não são a mesma coisa. A riqueza é um bem material, resultado de acúmulo e de, muitas vezes, disciplina (o que é, em si, uma virtude). A riqueza, como bem diz Adam Smith, pode tornar uma pessoa mais generosa devido à segurança material que sente em sua própria vida. Mas a generosidade não brota do simples acúmulo material. Como diria o próprio Pascal, o dinheiro, elemento do mundo material, jamais se tornaria uma virtude, elemento do mundo moral ou do espírito. Mas muitas vezes se misturam e se parecem. E para alguém necessitado, receber um bem material pode significar ter a vida salva.
A pergunta sobre a pureza da generosidade vai ao coração da intenção de quem é, "verdadeiramente", generoso. Uma coisa é pensar acerca da definição teórica da virtude, outra coisa é a prática dessa virtude. Só se é generoso e, portanto, se conhece a generosidade "por dentro", quando se pratica a generosidade. E para fazê-lo, muitas vezes, há que se correr risco. O próprio Cristo, sendo ele Deus, para os cristãos, só se revela em sua generosidade quando morre pela humanidade. Nesse sentido, não há generosidade "pura" sem algum risco de vida ou de perda.
Portanto, a força da generosidade é semelhante à da graça: ambas são imbatíveis, uma vez que não temem a destruição do próprio agente que as pratica. O nome da generosidade de Deus é graça. Como se vê a graça?


Luiz Felipe Pondé, na Folha de São Paulo

Cantor de jazz Al Jarreau morre aos 76 anos

Cantor de jazz Al Jarreau morre aos 76 anos

Músico ganhou sete vezes o Grammy ao longo da carreira

A lenda do jazz Al Jarreau, que levou sua música a novos público no mundo pop e através de aparições na televisão, morreu neste domingo, aos 76 anos, informou seu agente. O sete vezes ganhador do Prêmio Grammy – em variadas categorias, como jazz, pop e R&B – morreu em um hospital de Los Angeles, dias depois de anunciar que ia se aposentar devido à exaustão.
Um dos maiores sucessos de Al Jarreau foi "Moonlighting", a música tema do seriado cult dos anos 80 de mesmo nome e conhecido no Brasil como "A Gata e o Rato", o primeiro sucesso do ator Bruce Willis. "Sua segunda prioridade na vida era a música", declarou seu representante, Joe Gordon, em um comunicado postado no site do cantor. "Não tinha terceira prioridade. A primeira, muito antes das outras, era curar e consolar os que sofrem", acrescentou.
Nascido em 12 de março de 1940 em Milwaukee (norte), Alwyn Lopez Jarreau era filho de um pastor e de uma pianista de igreja. Começou a cantar muito jovem nos bares de sua cidade natal, onde sua voz não passou despercebida. Depois estudou psicologia, sem jamais abandonar a música. Fez nome em Los Angels, Nova York e através de suas aparições na televisão.
No início dos anos 1970, começou a compor as próprias canções, como "Lock all the gates" e "Sweet potato pie". Em 2006 uniu-se a George Benson para produzir um álbum, "Givin'It Up". Paul McCartney, Herbie Hancock e Marcus Miller foram alguns dos músicos convidados para esse disco.
Sempre elegante, geralmente usando gorro ou boina preta, Jarreau foi um homem generoso e refinado, muitas vezes desdenhado pelos puristas do jazz que o consideravam um cantor de variedades, algo que não o incomodava em nada. "Minha principal contribuição para a música terá consistido em introduzir o ritmo no registro vocal", resumiu em cerca ocasião.

Reprodução do Correio do Povo

sexta-feira, 10 de fevereiro de 2017

Acordão avança, povo bestificado

A CÂMARA começou o ano legislativo com o pé direito enfiado bem fundo na lama. Parece que nem saiu de férias da mutreta do fim de 2016. O Senado não quer ficar atrás. Lava Jato e alguns juízes resistem.
No final de 2016, também sob comando de Rodrigo Maia (DEM), deputados procuravam meio de fugir da polícia, como naquelas votações pelas madrugadas. Neste início de ano, tentaram evitar com urgência que o Tribunal Superior Eleitoral pudesse punir partidos.
Flagrados na mumunha, Maia e turma disfarçaram e recuaram. A reação pelas redes sociais por vezes ajuda a fechar os túneis pelos quais os parlamentares querem escapar da cadeia.
Até aqui, pouca novidade. Maia e turma são reincidentes e contumazes. Interessante é que, logo depois de desconversar da bicada no TSE, o presidente da Câmara levou um troco. Vazou outra notícia de envolvimento de Maia com rolos.
Dado o histórico do pessoal de Curitiba, o vazamento não parece coincidência. Dada a ofensiva de verão do governo Temer e aliados contra a Lava Jato, parece ainda menos casual.
O PMDB do Senado e agregados fazem coisas como colocar Edison Lobão na Comissão de Constituição e Justiça, sintoma de descaramento terminal.
A seguir, na noite desta quinta (9), Edson Fachin, ministro do Supremo ora no controle da Lava Jato, autorizou abertura de inquérito para investigar Renan Calheiros, Romero Jucá e José Sarney por tentativa de obstruir a Justiça.
Faz uma semana, este jornalista escrevera nestas colunas que Temer fizera bom proveito do recesso. Reforçara seu poder, sua coalizão, suas alianças no Judiciário e na elite econômica, o que parece fato. Que Temer evitava avançar diretamente na Lava Jato -o que era bobagem, lamento.
Em menos de uma semana, governo e PMDB botaram as asinhas de rapina para fora. Bicaram uma cadeira no Supremo, agarram os postos-chave do Senado, talvez agarrem o Ministério da Justiça. Renan está tão desenvolto quanto nos tempos de Supremo Senador Federal, quando peitava decisão do STF.
Em suma, como bom estrategista ou manobrista da política politiqueira, Temer parecia recuar quando, na verdade, dava a volta para atacar pelos flancos.
Pode causar repulsa, mas as manobras talvez sejam bem-sucedidas, apesar dos trocos da Lava Jato. Temer e companhia estão decididos a se defender da frente fria que virá de Curitiba, entre outras frias, como se escrevia aqui na semana passada.
"Supremo, elite do Senado, PSDB e a coalizão informal de empresariado e elite 'reformista' parecem ter feito um acordo tácito de estabilidade, de conter a degradação séria que se via antes do recesso. Isto é, conflitos entre Judiciário e Congresso e repique agudo de crise de confiança na economia e no compromisso de Temer com a 'Ponte para o Futuro'."
Parte do Supremo é aliada ou conselheira de Temer, que conseguiu um armistício com outros ministros. A "oposição" no STF é minoritária.
A maioria do Supremo, em consultas com outras facções do bloco do poder, age de modo a limitar o tumulto no governo e no país. Enquanto houver "reformas", os donos do dinheiro grosso e seus porta-vozes aprovam tácita ou explicitamente o acordão.


Vinicius Torres Freire, na Folha de São Paulo

terça-feira, 7 de fevereiro de 2017

Aos 77 anos, morre filósofo e historiador Tzvetan Todorov

Aos 77 anos, morre filósofo e historiador Tzvetan Todorov

Autor era referência na intelectualidade europeia desde anos 1960
O filósofo Tzvetan Tódorov, vencedor do Prêmio Príncipe de Asturias em Ciências Sociais e um dos intelectuais mais reconhecidos do mundo, morreu em um hospital em Paris nesta terça-feira, segundo informaram seus editores. O filósofo, linguista, sociólogo, historiador, crítico e teórico literário nasceu em Sofía, em 1939, e era um destacado pensador da literatura e historiador das ideias, assim como analista teórico da cultura.
Entre suas obras mais recentes, ele destacou tendências totalitárias em democracias contemporâneas: a xenofobia, a falta de pluralismo e a repulsa a imigrantes. "Este medo dos imigrantes, do outro, dos 'bárbaros', será nosso primeiro grande conflito do século 21", disse em uma entrevista em 2010. Ele tinha cadeiras nas faculdades da École Pratique des Hautes Études e na Universidade de Yale, e também deu aulas em Nova Iorque, Columbia, Harvard e na Califórnia.
Foi autor de títulos como "A Teoria da Literatura dos Formalistas Russos" (1965), "A Conquista da América" (1984) e "Os Abusos da Memória" (1995). Em 2008, venceu na Espanha o Prêmio Príncipe das Asturias como referência indiscutível no pensamento europeu contemporâneo. Ele também era detentor da Ordem das Artes e das Letras, na França, entre muitos outros reconhecimentos.

Reprodução do Correio do Povo

sábado, 4 de fevereiro de 2017

Filme de Mel Gibson mostra que admitir a diversidade não é fácil

Numa escala de zero a dez, minha islamofobia está por volta de 8,5. Mas meu antiamericanismo não fica muito atrás, e acompanho a repulsa geral causada pelas últimas decisões de Donald Trump contra a entrada de muçulmanos nos EUA.
Reconheço, de qualquer modo, que admitir a "diversidade" não é tão fácil quanto parece.
Meu interesse por quem "pensa diferente" é dos mais seletivos, e detesto perder tempo ouvindo ou lendo opiniões que, por bons motivos, já rejeitei há tempo do meu tribunal interior. Acho mais produtivo prestar atenção a fatos novos do que a argumentos velhos.
Mas uma boa defesa da diversidade aparece em "Até o Último Homem", filme de Mel Gibson com várias indicações ao Oscar.
Baseia-se na história real de Desmond Doss, um adventista do sétimo dia que participou da Segunda Guerra Mundial, no Exército regular americano, com a condição de jamais pegar numa arma.
Matar pessoas era contra sua convicção; alistou-se mesmo assim, porque julgava indigno ficar em casa enquanto jovens de sua idade arriscavam a vida. Propôs-se a um posto de paramédico, dedicando-se a salvar feridos sem matar ninguém.
O filme não explica direito, mas parece ter havido um erro nos formulários de alistamento; imagino que Doss poderia ter servido na Cruz Vermelha ou em outra função qualquer, sem ter de passar pelo treinamento padrão de qualquer soldado –que inclui, é claro, o manejo de fuzis.
Ele termina num pelotão comum. "Até o Último Homem" põe em cena os paradoxos e impasses burocráticos da situação, talvez exagerando a capacidade dos militares em aceitar –com reservas, é claro– a integridade religiosa do recruta.
Curioso que, no meio daquele dilema, não tenha sido chamado nenhum pastor, nenhum capelão ou filósofo para discutir as implicações da decisão de Desmond Doss.
Minha tentação inicial seria aplicar ao caso o raciocínio moral de Kant (1724-1804). A atitude do soldado só seria correta se pudesse ser generalizada como regra para todos os demais. E, obviamente, um Exército que se recusasse de modo unânime a tocar num fuzil seria uma contradição lógica.
Dessa forma, a ética de Doss só pode existir num mundo em que os demais não seguissem seu exemplo; apresenta-se como exceção, e não como regra. Não sendo regra, não tem como ser seguida universalmente; portanto, não é uma ética aceitável.
Avançando no raciocínio, vi que as coisas não eram bem assim. Seria impossível generalizar a ideia de não pegar em armas para todo o Exército americano. Mas Doss poderia replicar que a ideia pode, sim, ser generalizada –se incluirmos os nazistas e os japoneses em nosso universo de considerações.
Se todos os humanos seguissem a lei de Doss, não haveria contradição no que ele estava propondo.
A questão é se, com isso, não estamos fugindo de outra orientação que também deveria ser seguida "universalmente": a de que cada cidadão deve obedecer às leis do seu país.
Não conto demais se adiantar que o caso de Doss precisará de um "jeitinho" (imoral, talvez?) para dobrar a rigidez dos militares.
Ainda assim, eles poderiam incomodar o soldado com outros argumentos. Imagine que você está escondido com outros dez colegas –e de repente um soldado inimigo aparece com uma metralhadora. Só você viu o inimigo.
Não seria melhor matá-lo na hora, em vez de permitir que ele atirasse em seus dez compatriotas para, em seguida, tratar "eticamente" dos feridos?
O fato é que essas perguntas não foram feitas ao jovem fundamentalista. O filme mostra, com cenas fantásticas, a batalha entre americanos e japoneses pela ocupação de um platô pestilento.
E aí entra o elogio da diversidade. Para vencer nazistas e japoneses, atos de extrema violência foram necessários. Para vencer nazistas e japoneses, também o pacifismo de Doss foi importante.
Com heroísmo incomparável, ele salvou dezenas de feridos (está no trailer, não reclame de mim). Havia lugar, ali, para quem pega em armas e para quem se recusa a atirar.
É pelo respeito à diversidade, aliás, que vale a pena lutar contra um regime totalitário –e, quem sabe, o respeito constitua uma garantia a mais para a vitória. Enquanto Trump canta de galo, lembro que nunca é prudente pôr todos os ovos no mesmo cesto.


Texto de Marcelo Coelho, na Folha de São Paulo